outubro 15, 2018

antes que a vida se torne ordinaria

antes que a vida se torne ordinária demais.
o lugar é seco como uma cidade de um filme de faroeste. as casas são baixas e tudo é baixo para encontrar lá longe a cordilheira e mais próximo, vigilante, o vulcão. tudo é pó e poeira e fica-se com a roupa toda suja em dois minutos. amanhece frio e lá pelo meio dia o calor é insuportável e lá pelas seis bate o vento frio novamente. o céu anoitece já estrelado e o frio dá as caras. 
primeiro, vimos o céu num lugar sem luz. a van que nos levava ia titubeando no chão ruim, do lado passava o mato e casas no meio do mato, quem vive aqui? sem a luz do poste duas ou três manchas da via láctea nos sorriem tímidas. as estrelas continuam altas, pequenas, mas brilham sem lua. 
levadas de manhã por entre montes de pedras, lava embrutecida de vulcão e uma vegetação rasteira verde amarelada. tudo é marrom, amarelo, verde. num morro, guanacos comem da planta, tem o corpo marrom e a cara preta. o vento zune nos ouvidos. a todo o momento, o vento zunia, ora grosso nos ouvido, ora assobiando. nas pedras, os desenhos dos antigos povos atacamenhos. lhamas, pumas, e um macaco, um macaco-deus com riscos do lado. lhamas grávidas de lhaminhas dentro e etc. a rica rica cresce do solo, suculentas gordinhas de galhos duros e espinhosos. a montanha de pedra de lava se ergue em verde, branco de sal, marrom e um leve roxo do cobalto. trouxe uma pedra verde e uma da lua, como um cristal. os picos pontudos apontam pro céu sempre azul demais, sem nuvens. as encostas são cheias das pedras que vão se juntando umas às outras.
a cidade continua baixa e empoeirada.
na madrugada, a van nos busca. uma lua minguante bem sobre o horizonte, clara no horizonte donde nasce uma luz fraca e opaca, as estrelas ainda sorriem de luz branca. os contornos das montanhas são riscos duros no céu escuro. adormeço.
das entranhas da terra, saem as fumarolas brancas, e de algumas um jato intenso com água fervendo. os geiseres vem ao amanhecer frio e se despedem no calor do dia. no campo das fumaças, uma construção abandonada, um projeto de retirar energia daquilo. dentro do solo correm os rios de lava, fervendo. a água bule dentro da terra, mostra o magma demoníaco e com cheiro de enxofre de que é feita. um lago de águas termais - dizem - um lago de águas quentes e sulforosas saindo da terra onde os gringos se banham felizes até demais. não nos banhamos. o frio continuava cruel às nove. na volta, um vado, um pântano. as águas baixas por entre os pedaços de verde musgo donde os patos andinos, os gansos andinos e não mais que tipo de pássaro mergulham a cabeça na água e comem não sei o quê. o pássaro andino de olhos assustados e cara preta como um pinguim, o corpo branco. os patos de bico azul e os cines todo em negro elegantes se coçam. do lado do pântano, as cordilheiras em neve e as secas, o vulcão a assobiar. num pueblo de resistência ou turismo, as antigas casas de pedra e as novas, as casas baixas, a carne de lhama no espeto.
no sol quente, as lagunas escondidas continua fazendo frio por aqui tudo é planície. o vento não se escora em nada, o deserto é seco e nem a vegetação amarelada existe, só pedra. perto das lagunas o sal vai aparecendo. onde tudo uma vez houve mar, agora há crostas de sal em pedra que rasgam a pele. as lagoas não se vêem de longe, tem de chegar perto, andando pelo caminho do sal. são de um azul claro cristalino. a primeira azul escuro e as outras azuis tão claro quanto uma piscina. se abrem como buracos eternos no chão da onde a água vem do fundo, misturada com sal. mais sal que água. entramos no frio e no vento da lagoa de sal, para boiar. cheio de brasileiros falando e gente com medo, inclusive a gente. demorei para parar de boiar propositadamente, é difícil confiar no sal. daí quando deitei a cabeça na água vi aquele céu azul rachado de nuvenzinhas rarefeitas brancas e as pontas das cordilheiras lá longe e já era hora de sair. minha cara tava toda branca. a água evapora e sobra tiras de sal grosso por toda a pele. 
perdemos o óculos da dira e aparada num mirante de umas nuvens cor de chumbo se avolumando no céu não foi boa. tudo estava seco e estranho, sem vida. 
cedo nos levantamos para encarar com temor 4 dias de uyuni. a fronteira do chile com a bolívia é só quarenta minutos chegando perto do vulcão que antes só vigiava. consegui não dormir até ver ele de perto, as nuvens rondando o gigante, a terra escura se encurvando para o alto sem pico, uma cratera. quando acordei, havia neve na fronteira. tudo estava branco e demasiadamente frio. nunca tínhamos visto neve, mas o frio era muito para ir lá fora. a fronteira não é nada, um pedaço de terra extenso entre o vulcão e o nada aberto da bolívia. o chile tem suas cordilheiras dos lados, mas na bolívia tudo é mais extenso, um horizonte de terra. dois latões de lixo esmaltados de azul e amarelo, o pássaro de cara preta que chamamos de chuu ali esvoaçando e pousando, as 4x4 esperando os turistas com as mochilas coloridas. seguimos com maxx o guia boliviano de pele queimada de sol, dente de ouro e boné de lado. 
primeiro a lagoa branca, enorme. ao seu lado as montanhas refletem-se. branca porque rasa e cheia de sal. um depósito de água leitosa no centro da terra, entre os morros. sem nenhum animal, apenas água terra e mineral. sem nada que perturba um infinita paz que é feita de violência. 
depois, a lagoa verde, mais escura.
e finalmente os geiseres de la manãna, na cratera de um vulcão ativado. as fumaças brancas saíam de sulcos fundos da terra daonde um água espessa, ora vermelha como lava, ora amarela boiavam. a terra dentro destes buracos fica toda enrodilhada, como pequenos círculos, como uma pele queimada. a terra vai sendo queimada pela brutalidade da água quente. o cheiro de enxofre é um insulto, as fumaças nos atravessam e a terra parece ora oca ora firme. de dentro da terra sopram os vapores solenes. como uma música que precisa ser cantada.
nas águas termais da bolívia entramos, quente, dando a vista a um pântano com aquele mesmo musgo amarelado e uns flamingos longíquos. 
na laguna colorada, dezessete mil quilômetros quadrados de uma lagoa ora transparente como a água deve ser ora vermelha. roja. milhares de flamingos rosas se alimentam dos crustáceos que comem bactérias cheias de betocaroteno e logo se vê os flamingos que mais comem mais rosas, quase vermelhos e outros com manchas ainda incipientes no manto branco. os flamingos tem as pernas finas e dobram para trás, ficam em grupo, como se conversassem, mas apenas enfiam os bicos na terra, se coçam ou dormem em pé. milhares de flamingos. na água transparente sua penugem branca e rosa se reflete e os flamingos se duplicam sem fronteiras, tornando-se quase uma miragem, um bicho que não é ele mesmo. uma imagem. eles não se importam se são tal imagem tão devastadora de se olhar. em que a beleza foge aos olhos e estes tentam se dar conta de tudo que jamais virão isso novamente, ao menos que voltem. mas tem-se a impressão que é único e vai terminar, ainda que estejam ali há milhares de anos milhares se alimentando. terminará para nós.
na estrada a paisagem não é menos exuberante, pedras, e o verde amarelo, e as montanhas, que se abrem nu solavanco mostrando sua face branca e marrom. a montanha se ajusta ao olhar da perspectiva movendo-se e mudando de forma conforme nosso olhar de automóvel olha. uma sombra escura pode ser de um peixe ou uma cratera, não se sabe. a vicunha toda marrom come da folha amarela verde. nada daquilo é assim se testemunhado por olhos em movimento. a fenomenologia existe mais no deserto do que em qualquer outra parte.
o pueblo villa del mar não dá pro mar. entre um pântano com seus musgos e água rasa donde a lhama bebe e come e uma formação rochosa empilhada para cima, duas ruas de casinhas baixas e simples. o céu é frio e estrelado, bonito se deixado a se olhar. o quarto é grande, mas debaixo de cinco cobertores e um saco de dormir sinto-me sem ar. a altitude faz e o calor forçado no frio falta o ar. as bolivianas que atendem só balançam a cabeça ou nem isso, desviam os olhos, saem rápido antes que possamos decorar suas feições. cholas com suas armações na saia enorme, tranças compridas e bem feitas com pedaços de tecido entre o cabelo, meias grossas de lã laranjas e sandálias mal nos olham. nós é que as olhamos, como se fossem flamingos. elas, também, não se importam em ser olhadas e continuam a viver num mundo onde há apenas lhamas, terra, rocha e campos de quinua. céu estrelado e turistas, de toda parte do mundo, vindo testemunhar a beleza que é rotina. ou a miséria que aos olhos dos outros, é bonita. será miséria sua vida? ou é esse adjetivo que damos comparando ao conforto de nossas vidas? ninguém está imune de despejar coisas estúpidas para cima deles. seja a beleza que é estonteante, a miséria que deixa triste. nada escapa e tudo continua sendo pó.
dira deu um mal jeito e o segundo dia se fez mais triste.
formações rochosas se intercalam: na itália perdida, uma cidade de pedra esculpida pelo mar e pelo vento. lhamas pastam em paz. três lagoas formam uma só refletindo as pedras marrons. são de lava. a pedra é um processo inerte do planeta: se forma, se deforma, ali está. é bonita, mas é bruta. tem de se admirar por sua brutalidade por sua capacidade de nos aguentar escalando-a para ver o horizonte de pedras e montanhas. o ser humano põe os olhos em tudo e quer crê que viu tudo isso a partir deles, quer crê que sentiu a beleza apertar-lhe os bagos, os ânimos, as veias.
o ar que se respira é pouco, mas frio, percorre o corpo. a sede sempre é tanta e a água mal encosta na boca pede mais. os lábios se racham de calor e frio e a pele craquela pouco a pouco.
não sei por quê queria ver tudo isso e agora que escrevo perde ainda mais o sentido. quis sentir conexão com sua namorada, com a terra? quis ver.
pouco a pouco vamos nos aproximando do deserto de sal. 
tenho medo de altura e escalei pouco. a nível do chão, porém, considero que vi o que queria ver, patos de bico azul e a água parada refletindo o céu de pedra. as pernas finas e o bico encurvado do flamingo a cara de algodão da lhama assustada a folha grossa amarelada. 
quis ver o que eu não vi antes, qualquer coisa que fosse, vida, a vida mais vívida porque próxima da morte. num deserto onde tudo aponta para a morte, animais como a biscate coelhinho canguru se esconde na sombra da pedra vivem. os indígenas viveram e vivem. na montanha vê-se as linhas que são muros de pedra que dividiam as casas dos povos pré incas. os povos viviam em encostas, meio inclinados, bem divididos, donde a água do pântano só lá embaixo e em cima só o sol que tortura. muito longe do mar onde já fora mar. então o ar tem algo de mar: o sal. o vento continua sua sinfonia desde o começo do mundo. das lhamas e alpacas fazem suas roupas quentes e elas mesmas precisam disso tudo. como deus é bom e darwin estava correto, como darwvin é bom e deus não existe, como darwin nunca existiu e deus dorme debaixo da pedra. o planeta é um mistério infindável, do magma vaporoso até o céu escuro de estrelas. quis vir para testemunhar ainda jovem a profunda velhice e soturnice da terra, os rasgos e as rusgas de sua face, seus olhos fechados de noite contrariados. o que é implacável, insólito, instável, que expulsa o homem da terra que continua fincando com suas sandálias de couro e mais de lã tranças negras debulhando no chão. em uma paisagem onde tudo paira eterno e imutável sabe-se deformado e em constante mudança, terra erodida, força da água nas pedras, vento que esculpe, vulcão cospe, tectônicas que fazem tremer e abrem falhas na terra. tudo lento mas visível como se rápido, como se víssemos de outra constelação o acelerar do tempo da terra. tudo visível mas tão sólido quanto uma cordilheira como se não fosse possível pensar que antes ali não havia nada. mas agora ela existe gigante e bruta e arregaça os dentes brancos a todo o momento como que querendo nos engolir como se dissesse que sempre esteve ali e sempre estará. tudo na natureza de um egoísmo pungente, que parece se maravilhar consigo mesmo, assassinando seu rosto em múltiplas lascas que voam para quilômetros distante. 
chegamos a um pueblo onde um hostal de sal nos esperava, os tijolos de sal com cimento do lado e o chão de um sal maior que o grosso titurado. dava para frente do deserto longíquo onde não se via nada além do branco. lá longe umas luzes assinalavam uma usina tecnológica de extração de lítio. o lítio da minha pilha que escrevo nesse teclado no meio daquele sal todo e eu nem tchum. reto e infinito, quando a noite caiu em seu manto habitual de estrelas o céu ainda refletia a luz que brotava como magia do horizonte. 
acordamos ainda no escuro e subimos uma isla no meio do deserto de sal, um vulcão feito de rochas do fundo do mar, que ainda mostrava os corais enbranquecidos e envelhecidos pelo tempo e pela poeira. cactos de cinco metros grossos cheios de espinhos por toda a parte. o sol nasceu lá do final do horizonte onde o teto branco reto e infinito de alguma maneira parece terminar. e iluminou todo o branco deixando rastro de luz e um céu azul. 
no meio do deserto nada se vê. a não ser longe as montanhas refletidas pelo branco arredondando-se onde tudo, aqui, não tem fim. não tem fim o horizonte do sal, como é o mar quando o olhamos da praia, não tem forma as montanhas que se refletem em si mesmas e parecem boiar, miragens. tudo é branco e o sol tudo lava, cegando nossos olhos escondidos por óculos de sol. nos divertimos tirando aquelas fotos. 
tudo aqui um dia fora mar e agora o sal em quatro ou oito camadas grossas se sustenta em cima de água. buracos se abrem no sal pela pressão da água e por ela escapa a água com jeito de congelada e os cristais de sal. morte. lembra-se da morte, do que há depois dela, talvez. um nada branco congelado, não leitoso, não confortável. senta-se no sal e fica-se branco e gelado e a pele queima de sol. beija o branco.
formam-se no chão de sal como que octângulos deformados. craquelados, parecendo ceder á água sem nunca ceder, firme e frágil em sua essência.
sexual.
depois disso não havia quase mais nada para ver além de trens velhos, cidades de faroeste, uma simpática boliviana perguntando se gostamos. este é um pueblo muy chico. a linha do trem até antofogasta no meio da poeira.
surreal e selvagem.