dezembro 10, 2015

carta a alejandro zambra

eu gostaria de me corresponder com quase todos os escritores que eu leio.
algumas vezes eu escrevo aos mortos, é um suplício que me faz bem. agora que leio um bem vivo, decido escrever esta carta e talvez enviá-la.

(quando eu escrevia críticas de cinema, minha melhor experiência foi quando o diretor de eles voltam, filme pernambucano que gostei bastante, encontrou minha crítica. eu tinha visto o filme no Janela Internacional de Recife, quando era janela crítica, mas não tive coragem de publicar no blog do festival; porque achava minha crítica muito apressada, ou muito ruim; e lá era o lugar onde os diretores poderiam ver minhas críticas [embora a crítica que fiz sem ser obrigada, por ter amado o filme nunca ressurgiu nenhuma repercurssão de seu diretor, Leonardo Moramateus. bem isso, foi em 2012]. publiquei no Além de Economia, blog que escrevia sobre cinema. o diretor achou minha crítica, percebeu que eu tinha visto o filme no festival e mandou e-mail comentando-a para o monitor do Janela Crítica. caminhos indiretos e furtivos a parte, foi uma experiência surreal; acho que a experiência mais completa do que é "escrever uma crítica de cinema contemporâneo").

caro Alejandro,

estou lendo seu livro Formas de voltar para casa (talvez eu envie essa carta só quando termine o livro, é o mais justo para com o seu autor, mas precisava antes de tudo, escrever, antes de esquecer). 
gosto do seu livro e do jeito que escreve, e tudo mais, mais ou menos como está escrito na orelha da edição da Cosac Naif. esse é o primeiro livro seu que leio; mas não viria aqui se não fosse para gritar uma coceira, um incômodo que me bateu.
na página 124, tem a seguinte passagem: minha mãe não está de acordo com o que disse meu pai. na verdade está mais ou menos de acordo, mas quer fazer algo para evitar que a noitada se arruíne.
tem mais duas frases e o próximo parágrafo volta a falar do pai. o pai é que está em discussão, nesse momento caloroso, a sua intolerância, a saudade dos tempos de Pinochet.
é com o pai que o protagonista se debate, é principalmente nele que encontra a sua culpa e inocência por ter sido filho dos pais que não faziam nada durante a ditadura. Alejandro, eu sou bem tolerante, apesar de feminista, com as minhas leituras. eu perdôo os escritores que gosto e alego justificativas: o tempo que viviam; o contexto. eu não sou nem chata, eu leio escritores notadamente machistas com até ávido prazer, eu me esbaldei em Cortazar, em Breton, em Miller e etc etc (notadamente todos, e todas as mulheres também, as concepções de feminilidade de Virgina Wolf, a recusa de Duras em ser feminista, as putarias de Hilda Hilst, quase tudo que me lembro) (mas um dia eu escrevo sobre isso, talvez).
por quê a sua frase sobre a personagem mãe veio zunindo igual mosquito na orelha?, eu me pergunto. porque um) você é contemporâneo, mas acho uma justificativa falha, acho que leria contemporâneos machistas, a depender de suas qualidades literárias e seus interesses temáticos.
é pelo jeito que se escreveu. estou aqui a falar com um escritor; e como vê pelo jeito que tento escrever, eu gostaria de escrever também, de escrever quem sabe um livro ou um conto. e porque a forma como você escreveu esse livro, parece que me dá abertura para falar justamente sobre isso, sobre o escrever, sobre os personagens, sobra a escolha das palavras. e agradeço por isso, agradeço por poder sentir que posso intervir. que posso lhe dizer; agradeço pela sua proximidade comigo, com sua leitora. (não sei se o elogio ao livro deveria vir aqui ou se isso soa concessão? mas é sincero e acabo de perceber isso, que o seu bliss tá nisso)
a personagem da mãe não tem uma opinião forte, como a do pai; a mãe é a a anfitriã, guarda a harmonia das coisas (enquanto o pai protege a ordem). a mãe, você não sabe se ela está de acordo ou não com a opinião do pai ou se ela cede aqui e ali para manter a harmonia entre os dois homens que estão ao seu lado (e abaixo, acima e a fundo, dentro e fora) para que as coisas entrem em harmonia novamente. a mãe, a nossa mãe sempre aspira (a com crase?) harmonia.
esta é uma mãe comum, isto é o que eu penso sobre a minha mãe quando vejo ela apoiar o mesmo candidato que o meu padrasto. esta é uma mãe tipo, o problema é que sempre estamos a escrever sobre as mães tipos, sobre as mães que não são nem lá nem cá, as mães que não querem arruinar as noites, os dias, e etc. você pode me responder dizendo que essa opinião é emitida na voz do personagem; mas de alguma maneira, tem um quê nessa frase que parece estar distanciado personagem e autor. aqui eu vejo autor, ou eu quero ver um autor; assim posso justificar a faísca que senti.
bem, esta é a pegadinha e a delícia do seu livro, não é? eu sempre quis escrever um texto ou um roteiro onde as frases se repetem, mas em contextos diferentes, e ganham outras significados, e você me surpreendeu fazendo isso muito bem, criando um labirinto. vai ter a conversa com a mãe do escritor; que é uma conversa linda e sincera; e a conversa do professor com a mãe, que é uma conversa cruel e infantil. a personagem, existe, sim, mas enquanto está no livro dentro do livro, ela é um tipo de mãe. eu não saberia explicitar isso em detalhes, mas é só uma frase que me dá a certeza disso, que é essa que eu copio aqui.
ora, toda essa coisa da mãe me levou a pensar nas suas personagens femininas, verdadeiramente - bem, aqui está o perigo de deslizar com uma feminista (ou uma pessoa que defenda alguma minoria; que faça parte dela; que participe de debates sobre isso, que milite). caso eu não tivesse avistado a mãe fazendo com que as coisas voltem ao normal, sem ter opinião forte, eu poderia ter passado seu livro livre de pensar nas personagens femininas (ou absolutamente não, não tenho como prever isso e poderia retirar essa parte, que é muito duvidosa, não consigo passar meu ponto; judeus lendo sobre judeus, e essas coisas assim). o que importa, absolutamente, é que a brecha, seja do personagem, seja do autor, me permita pensar nas personagens femininas, e isso me parece bom. eu prefiro isso (a com crase?) pessoas que antes de proferir o discurso já se blindam das possíveis críticas e querem contemplar todas as minorias, lutas, ideologias, caralhos (e bucetas! fiz uma piada. como é que se escreve uma piada?! um ponto de exclamação dá conta?! pensei em colocar haha, mas ficou ridículo)
não quero disseca-las, porque não estou aqui para provar meu ponto e vencer a batalha. mas rapidamente: por que as mães ficam em casa enquanto o marido correm riscos? os maridos são comunistas; os maridos tem opiniões fortes. não é que as mães sejam reacionárias, no entanto, não são revolucionárias. havia poucas mulheres no partido comunista em 70, 80? acredito que sim; mas por que Ximena que é descrita pela Claudia como a irmã revolucionária (e daí sua mágoa) aparece com consistência somente depois para os leitores; como uma pessoa amarga e detestável? por que Claudia não se importa com os ditos atos revolucionários de Ximena, mas se importa com o de seu pai? bem. vou encontrando suas respostas para as minhas perguntas eu mesma. Claudia e Ximena competem uma com a outra, é uma competição feminina e fraterna, e você fala disso muito bem; bem, eu não estou dizendo que isso não acontece na vida real, eu acho bem possível que seja assim, eu vejo exemplos a todo o momento. o ponto é: por que as personagens femininas estão no meio termo? estão preocupadas com a casa? com a harmonia das coisas? por que elas não sabem de casa? por que as mães são sempre menos reacionárias ou revolucionárias que os pais? que parâmetros as definem como mulheres que não arruinam noite; a não ser as mulheres com quem trepamos?
sim, a Claudia é uma ótima personagem; é misteriosa e apaixonante, você a descreve como descrevem os bons escritores as mulheres de que gostaram.
não há ironia nesta última frase. eu gosto de mulher, e tenho vontade de escrever sobre a minha namorada do mesmo jeito que vocês escreveram, tenho vontade de emprestar a ela esses encantos, as meia frases ou frases longuíssimas, de deixá-la um pouco louca para que seja incompreensível para mim, de deixá-la linda para que talvez qualquer um quisesse trepar com ela, qualquer um que a lesse. e por fim, a Claudia é melhor do que o personagem principal, por fim ela é melhor - como elas sempre são - mas ela se sai melhor e eu gosto disso, eu odeio quando o Cortazar suicidou a Maga, eu odeio quando o Breton mandou a Nadja pro hospício, eu odeio como Miller sumiu com todas as mulheres e as bucetas mais incríveis só porque quem escrevia era ele, o homem, eu odeio quando Faulkner mata a moça grávida ou quando esquece a outra. esse ódio eu continuo buscando, apesar de terminar ou continuar os livros e continuar a gostar deles. eu gosto que Claudia é melhor do que ele, mas desse jeito, ela se torna melhor do que nós, leitores, e brilha como mais uma estrela feminina distante & incompreensível na constelação dos tipos. mas não o culpo disso, de jeito maneira. a única forma para que as personagens femininas sobrevivam e tenham uma vida normal ou uma morte catártica é sendo elas a primeira pessoa; e com maior probabilidade se mulheres escritoras que empreendem o movimento. você mesmo se antecipa: um livro sempre é sobre o autor.
de qualquer forma, lhe escrevi não para falar sobre as amantes, mas sim, sobre as mães. sobre as mães. as mães que não querem arruinar a noite. é só isso que eu gostaria de lhe dizer: as mães, elas tinham de ser no mínimo piores do que a encarnação do desejo de harmonia. no mínimo pior, no máximo.
quem sabe.
temos aí um tempo para descobrir, para redescobrir nossa mãe, a minha mãe.

(mais tarde reedito essa carta e escrevo se precisar um pouco do final do livro, mas era somente isso que eu queria dizer, sem frase de efeito, as mães, salvem as mães da literatura! e do cinema, e da representação, salvem-nas. deixem que se tornem menos mães, mais mulheres - mais personagens).





novembro 21, 2015

a praça

a praça está um em polvorosa, mas quando ela não está? jana se espreguiçou igual um cachorro vira-lata. os homens andam agitados e há muitos tipos deles por aqui. os débeis moradores de rua buscam o sol e se espalham pela grama. eles também cheiram e fuçam e ás vezes latem. mas latem quando a lua vai alta no céu, porque de dia há os homens fardados que andam chacoalhando penduricalhos negros nos cintos.
eles olham e cantam a rua e rodopiam e jana se esconde entre os negrumes escuros que a sombra da noite dá, porque não quer incomodar, tampouco ser incomodada. ela está alerta e sadia de noite, mas todo passo é um risco, então vai na cautela. as luzes dos postes ora atrapalham, ora ajudam; as luzes amarelas recortadas mostram o pedaço do chão e escondem o pedaço do céu. jana se interessa pelo céu, mas os homens preferem fincar os dois pés no chão, e também o corpo, e também os pensamentos.
há os homens que passam andando apressados, aperreados com vontade de mijar também, e estes não deitam na grama, sequer pisam na grama, eles andam pelos caminhos ladeados das círculos de ferro fino; jana tenta compreendê-los, porque o caminho pela grama é um caminho curto ou um caminho que se faz e refaz de diferentes maneiras. e os caminhos ladeados, que são os caminhos cinzas, os caminhos de pedra, eles dão sempre no mesmo lugar, na mesma maneira. jana repara que estes homens tem sapatos e talvez não queiram sujar seus sapatos na grama. jana olha para os seus descalços, suas unhas são longas e pretas, jana pensa que deveria tomar um banho e talvez calçar uns sapatos; assim talvez ficasse atarefada como os homens dos sapatos.
jana só pode tomar os banhos tarde da noite, na fonte ou naquele lago; mas jana também tem medo do lago porque ali nadam uns peixes grandes de olhos esbugalhados. jana tem medo de chegar perto dos peixes e eles lhes contar maldições de outros tempos; de outras águas, jana se espanta com todo tipo de maldições; quando ouve estampidos ou o corvo piar lá em cima, ela sai correndo com os olhos espertos. jana não sabe muito bem porque sente que os peixes tem sabedorias passadas, mas ela sabe que não são todos; são aqueles grandes e coloridos, com as manchas alaranjadas ou avermelhadas espalhadas pelo corpo e aquela boca redonda delineada por um fio da mesma cor das manchas que está sempre a falar, a falar as maldições e contar as histórias, e a diluir na água o peso da História que está escrito em seus corpos escamosos igual pergaminho com aquelas manchas misteriosas. jana se aproxima sempre devagar da água do lago, sempre de noite também por causa dos homens fardados, e sempre leva um pouco só de água; fica o tempo todo a repetir um mantra que diz, peixes, peixes, não apareçam, me dêem licença, os peixes. eles eram pequenos e pareciam inofensivos, mas jana sabia que toda a gente tinha medo deles; e jana se sentia um pouco orgulhosa de si porque para olhá-los ela pedia licença e ia paciente, ela pedia licença aos deuses que ali dentro daquele olho habitavam.
jana dava muita sorte quando a lua estava cheia e refletia na água do lago; aí os peixes não vinham mesmo para a superfície, se escondiam da luz e se aconchegavam no escuro limbo do fundo do lago esverdeado. jana gostava de olhar o reflexo tremulante da lua, mas o que lhe dava alegrias infinitas é que podia se ver, como um espelho; jana, fêmea empertigada, gostava de ver como é que se parecia, como é que ia a sua aparência. ela ás vezes se espantava com a sua forma, e também se achava um pouco diferente demais dos demais.
as mulheres que passavam pela praça também se dividiam um pouco entre as da grama e as do caminho; as do caminho eram as senhoras e as meninas, calçadas e com sacolas, as da grama eram jovens provocativas que ficavam por ai esperando a noite chegar. como jana, essas jovens também habitavam a noite, porque é na noite que despertavam e colocavam seu corpo a trabalhar; elas andavam e chamavam os homens e estavam arrumadas. elas ás vezes pareciam arruinadas; mas sempre voltavam para a noite, sempre voltavam para a noite.
jana acreditava as mulheres todas se pareciam consigas mesmo, e com ela mesmo, e por isso que quando se olhava no reflexo, podia vê-las todas, iluminada pela lua cheia, que espalhava um canto suave, mas de voz rouca, como o de uma avó que não entende mais o sentido das palavras, mas as canta para continuar existindo; sua vida, sua história e sua divindade.




novembro 05, 2015

dentro dos teus sonhos.


Janaína

este é um protótipo de novela, conto ou romance.
como eu parei de escrever, decidi publicar o romance.

mil rascunhos nada concluí / 
no máximo 
vou ser ghost writer.

O homem sorriu à Janaína e Janaína retribuiu o sorriso como lhe ensinaram. Fazia uns vinte dias, ou mais talvez, que ela tinha chego às bandas de São Paulo, vinda do interior, duma cidade divisa com Mato Grosso, trazendo uma trouxa de mais ou menos umas quinze peças - incluso nesse rápido cálculo as roupas íntimas. Sutiã, possuía apenas um que valia a pena ver o mundo, um com rendinhas nas alças e na costura superior, róseo. Suas roupas não cheiravam tão bem, mas depois de lavar peça a peça no tanque da pensão que se estabelecia - provisoriamente, com a graça divina - e chegar em casa fedendo à cigarro e outros cheiros que ela não discernia muito bem (era a umidade do ar ou o suor do seu corpo, afinal?) tinha desistido de fazê-las cheirar bem. De qualquer maneira, Janaína se protegia dos maus odores e maus agouros advindos deles se besuntando de óleo e colônia. A colônia provinha ainda da sua terra, como se costumava chamar qualquer cidade de origem para os migrantes que na cidade grande se fincavam - dita sempre com um tom um pouco melancólico de modo que depois de minha terra se aconchegavam reticências evasivas... mesmo quando a terra podia lhes infingir dores ou repulsas. A colônia tinha vindo em um frasquinho de vidro guardado cuidadosamente em duas sacolas de plástico enroladas. O óleo ela comprara mesmo ali do lado da onde trabalhava. Uma loja grande, que vendia ferramentas e afins. Janaína se surpreendeu que tivessem a contratado tão logo pedisse, sem indicação nem experiência de trabalho, já que em seus vinte e alguns anos, ela tinha apenas ganhado um ou outro trocado limpando certas casas e cuidando de algumas crianças ricas lá na sua cidade. Era uma cidade que os pequenos todos se confudiam, os ricos e os pobres, ou era o que declaravam os velhos da cidade, com seu ar mítico e irrepreensível. Janaína, no entanto, apenas ouvira esta frase peculiar sair da boca dos velhos pobres, enquanto esticavam as pernas ao sol, sentados em cadeiras de plástico de praia, lá onde a praia era distante o bastante para ser comparada ao fim do mundo ou ao além. Variações de humores a classificavam como sendo paraíso ou inferno, ouvira mesmo até como o lugar onde as almas esperam o julgamento final. Foi da boca do seu chefe que Janaína tinha descoberto, neste dia mesmo, que estava perto o suficiente da praia para ouvir dizer dela da maneira mais banal possível. "Vou descer para Santos, esse final de semana. Levar a dona que não me sossega" foram as palavras ditas por ele. "Santos não presta" retrucou o outro, um moribundo de bigode que vez ou outra dava sua opinião de modo sintático e sem nenhuma brecha para alguma intervenção. Acanhada de falar besteiras ao recém chefe, Janaína perguntou ao bigodudo se a praia ficava perto dali, assim, tão pertinho que num dia dava pé de ir e no outro voltar, que era também um subordinado - é assim que são as coisas por aqui, comentou uma prima distante sua que a recebeu na rodoviária e desde então não aparecera nem ligara nunca mais. O bigodudo respondeu-lhe com uma inflexão esquisita do seu rosto, algo que fazia seu bigode felpudo se mexer. Janaína tinha descoberto que aquela expressão era o seu riso, junto dela escutava-se um som abafado e grave, como um ronco esquisito - e que à primeira escuta, não se podia nem discernir de que fonte provinha o ruído. Mas os outros homens da loja, sabiam que se o riso do homem vinha à tona, a coisa era digna de se atentar. "Que você disse, gracinha?" disse o mais novo deles, um menino atarracado de voz esganiçada e que chamava Janaína apenas de pronomes diminutivos - assim como a sua avó chamava todos os netos, e com certa insistência quando se dirigia à Janaína, mesmo que ela estivesse a dizer ordens e dar sermões. Quando Janaína ouvia o "gracinha" sentia que fizera algo de errado, como um eco da sua avó que se propagava dentro do seu próprio corpo. Sobressaltada e sem conseguir elaborar uma resposta inteligente, os homens deram aquelas risadas, que eles apelidaram de carinhosas, risadas corriqueiras desde o dia que Janaína boatara os dois pés na loja e perguntara se podia preencher a dita vaga de balconista. Eles riram, olharam ela nos olhos sem pudor algum enquanto Janaína se concentrava em olhar para os seus ombros, com os olhos postos em ângulo de noventa graus - e miúda que era, atingia os ombros ou o nariz do mais atarracado, ainda que os desviando de quando em quando para o chão, sempre os levantando para fazer uma boa impressão. "Bem, pensávamos em chamar um homem, que entendesse um pouco das coisas que vendemos aqui." "Mas, ora, se até o Bernardo consegue saber o que é o que." Mais risadas, dessa vez altas como chicotadas nervosas. "Mas sim" - e o chefe perfurou Janaína com os olhos, "pode ser; está preparada para um rápido teste?" e ele apontou para algumas ferramentas dispostas na entrada da loja e pedia para ela dizer os nomes; suando frio, Janaína apenas confundiu a chave de fenda com a chave philips. O chefe ponderou a questão em menos de dez segundos e disse, não sem antes olhar para os subordinados e pedir à eles como que permissão para contratá-la através de um sorriso de boca fechada: olhe, está tudo escrito nas caixas, se você souber ler não vai haver problemas. Simpatia é tudo nesse ramo. Os homens riram um pouco mais, Janaína resolveu rir um pouco também, pois não sabia como deveria se portar. Saiu da boca dela um sorriso torto, quase um não-sorriso, mas um esgar de lábios. "Veja, sorria um pouco, me dá um sorrisão." Janaína deu-lhe. Eles deram risadinhas baixas ao ver o sorrisão que saía da boca dela e num impulso violento que Janaína não pôde nem antever, fechou-o de supetão, angulando todo o seu rosto - "ficas aí o dia todo como se tivesse comido fruta podre" costumava resmungar seu falecido pai. "Veja, querida, não se altere,  são risadas carinhosas. Ri com a gente, e sorria sempre, a clientela gosta." As risadas carinhosas sempre irrompiam e Janaína, ao ouvi-las, escancarava seus dentes num sorriso que ela acreditava ser absolutamente sincero. Sustentava-o neste momento com tamanha persistência que o menino atarracado teve que repetir a pergunta. "A praia... a praia... é pertinho daqui...?". No segundo seguinte, irrompeu a voz lamentosa do Betão do boteco "ai... minha caipirinha!"; o chapeiro do boteco apertado e de paredes oleosas que ficava ao lado da loja de ferramentas e que costumava fumar seus cigarros na porta da loja a fim de bater um papo, principalmente no meio da tarde, onde só um ou outro conhecido bebiam. Betão era gordinho e calvo e uma voz tão maleável que qualquer grosseria saída de sua boca parecia um lamento terno. Ele costumava chamar Janaína de caipirinha com brilhos nos dois olhinhos bem redondos, soltando logo após seus costumeiros suspiros. As risadas graves explodiram e ecoaram dentro da loja depois do seu surpiro; elas pareciam cem vezes mais cheias porque rebatiam nas coisas todas de metal que existiam dentro da loja. Janaína esperou pacientemente o momento acabar. Por fim, sobrou apenas a risada esganiçada do menino atarracado, atravessando longos minutos quando todos já iam se recuperando. O chefe mandou ele calar a boca secamente e ir lá dentro procurar o que fazer, lembrando-se repentinamente dos seus queridos clientes que por eles tudo fazia - e além disso, o menino era um porre.  O grito repentino do chefe, que costumava dar uma dessas, fez voltar a loja ao seu ritmo corriqueiro, mergulhada num silêncio estridente de metais batendo em metais, da campainha que tocava quando algum cliente entrava e de passos lentos que não podiam andar muito além do que sete passos naquele espaço apinhado. Já Janaína mergulhara num tormento próprio, uma ansiedade banal mas pungente, sabia que não podia mais perguntar sem que as gargalhadas irrompessem e interrompessem o trabalho. "Bem, sim, um mapa. É preciso ver um mapa. O último mapa que eu vi, eu tava na escola. Há quanto tempo...! Eu não lembro de nada. A praia... com certeza é próxima...! Ela não poderia ser distante para sempre. Não, isso é coisa dos velhos idiotas. Mas tão perto assim...? Quanto será que custa para chegar até...?" foi quando ouviu o sinal estridente da campainha e um homem entrou a passos firmes. Janaína se desfez de seus devaneios como quem arranca uma folha do caderno sem nenhuma piedade e lhe sorriu. Além de sorrir, Janaína sabia que se apoiasse os braços em cima do balcão e posicionasse o seu corpo um pouco mais à frente os homens seriam adoráveis para com ela, voltariam sempre e o seu chefe a elogiaria, talvez a mantivesse ali por um tempo bom o suficiente para que ela pudesse... mudar para um apartamento ... ou... ir à praia, quem sabe. 

A ideia de ir à praia não abandonou os devaneios de Janaína. Era se aconchegar na cama que havia no quarto da pensão, depois de banho tomado, e descer sua mão de dedos alongados até a pélvis, a fim de se masturbar para achar o sono perdido, que a imagem vinha. Estava a demorar um pouco mais de tempo para começar a se masturbar, prática que havia adquirido desde menina, já tendo perdido as contas dos anos. Costumava ter uma perícia bem certeira na coisa, tinha desenvolvido um método tal que não dependia de enrolações, fantasias ou disparates pornográficos, apenas encaixava o dedo de maneira precisa e silenciosa no seu clitóris, não podendo acordar as irmãs com remelexos e gemidinhos quando dividia quarto. Nunca tivera sono na hora de se deitar, enquanto sua irmã mais nova parecia dormir logo que deitava a cabeça no travesseiro. A siririca diária trazia-lhe um sono pacífico, raramente atravessado por sonhos inoportunos. Não se lembrava mais porquê havia começado a se masturbar ou se haveria no seu ato tesão por algo ou alguém; no entanto, ela não gastava grandes tempos a pensar sobre isso, tinha se acostumado à ideia de que essa era sua forma de conseguir dormir e desassociado o ato ao tesão ou mesmo a algum tipo de imoralidade ou sujeira. 
Foi uma noite chuvosa que a deixou alarmada, enquanto a garoa caía fina e constante, não conseguia se concentrar; sua cabeça ia visitar a praia que morava nos seus pensamentos. Ficou indagando-se sobre ela, sua proximidade, sua cor, a textura das coisas, de que modo as pessoas se portavam, o que ela esperavam quando lá estavam como nunca havia feito antes - até então, não tinha sequer percebido que a suposição de que a praia, para os velhos de sua terra, seria o fim de um mundo e o começo de outro a impressionara tanto. Não é que impressionava, pensou rapidamente Janaína, mas estava tomando forma de obsessão, coisas que a sua avó chamava curiosamente de possessão da alma, coisa que Janaína tinha, que sua avó disse ter na juventude até ter se livrado disso com a ajuda de Deus e todos os santos e que fez seu pai falecer de bêbado. Possessão da alma, ponderou ela quando o celular apitou duas da manhã, a mesma que tinha feito ela parar ali naquela cidade, sem ninguém a esperá-la. Dormiu chorosa, agarrando-se ao travesseiro entre as pernas, sabendo já que a tormenta não a abandonaria tão cedo; não foi um sono tranquilo: depois de anos, Janaína voltou a ter um sono sobressaltado por visões desconexas, ondas de mar, almas transparentes e um vazio escuro que sobrevoava seus sonhos quando ainda era muito pequena para saber como é que se achava o clitóris. O tal do vazio escuro fazia-a enfurecer sem motivo e ela terminava por acordar gritando, molhada da cabeça aos pés, tremendo o corpo todo. Foi às sete que dessa mesma maneira acordou, com a exceção de que agora, crescida, tudo parecia mais patético. Demorou algum tempo para que se lembrasse como é que fazia parar a tremedeira; tendo de respirar devagar e lentamente, e ao soltar o ar, saía um chiado agudo, um naco da sua voz, algo que a fazia lembrar-lhe um animal qualquer. 

Andando para o trabalho, segurando um guarda-chuva comprado a cinco reais na rua e que ia de mal à pior, topou com um gato. Janaína tinha rivalidade com os gatos; quando era menor, andava de quatro a persegui-los e miar, mas os gatos da sua rua não a creditavam, não a faziam como uma de sua espécie - de jeito que foi vendo ela perseguir obstinadamente os gatos, de quatro, e lambendo os pés das cadeiras que a sua avó identificou que a menina nascera com possessão da alma e a maculou desde então. O gato estava na calçada embaixo de um toldo de uma loja fechada e olhava a chuva com olhos sonolentos. Parecia imóvel. E que nada que ali pudesse ocorrer, se um tornado viesse e abrisse crateras ao seu lado, se um raio atingisse outro gato que corria muro acima, nada faria que o gato se levantasse. Janaína agachou-se e chamou o bichano. Ele demorou a voltar seus olhos rajados de amarelo, mas quando o fez, Janaína arrependeu-se. Havia algo nos olhos dos gatos, de todos os gatos. Havia algo de errado, havia algo de ruim. Janaína foi para debaixo do toldo e começou a espicaça-lo.

setembro 28, 2015

existir

tem acontecido eventos estranhos por onde passo. hoje mesmo, de manhã, antes das oito, uma moça de pernas grossas passou correndo com sua bolsa em mãos. atrás, um menino vinha correndo e gritava "pega! pega! travesti arrombada! esfaqueou o moleque e agora sai correndo! pega!". mais distante, porém tão alto quanto, uma voz grave desafinada respondia ei zu, ei zu! deixa quieto, zu, êzu! olhei para trás a fim de saber se o dono daquela voz era homem ou mulher. não pude saber. a travesti também era uma moça de classe média, de bunda grande e shorts jeans, blusa rosa. o primeiro menino gritou de volta: eu vou atrás dela, eu vou atrás, eu vou achar, esfaqueou o moleque e agora. quando cheguei na rua para atravessar para a praça da república, o menino que corria voltava. ele olhou para mim e eu não sabia seu gênero também. os transeuntes todos olharam, mas como eu, permaneceram impassíveis. apenas os pescoços se mexeram, como fazem as pessoas quando ouvem gritos e quando, finalmente, podem olhar sem disfarces para a movimentação. no resto do tempo, nos contentamos apenas com olhares enviesados, com a íris a percorrer o espaço do olho tanto quão possível é a fim de olhar o rosto ou a bunda ou os gêneros ou os moradores de rua ou os policiais ou as putas. o distender do pescoço é a máxima ação. ninguém saberá se são homens ou mulheres ou nenhum deles, quanto menos se um deles esfaqueou um muleque na manhã clara de uma segunda-feira; o crime a céu claro é abalável. tudo isto lembrou-me que na sexta, quando andava pela apinhada calçada da 25 de março, um velho branco e grande carrregando duas sacolas pesadas gritou e se moveu enloquentemente, seus braços se esparramaram no ar, não havendo ar, se esparramaram por sobre as pessoas que lutavam para conseguir caminhar em território ocupado. gritou e perturbou o som histérico, mas ainda assim contínuo, da vinte e cinco, o vozerio misturado aos gritos dos vendedores, que repetem suas frases incansavelmente carregador, olha o carregador, carrregador de bolsa, carregador, olha o carregador, carregador de bolsa, roubou, roubou, eu senti. gritou o velho e correu a fim de alcançar o homem negro que estava atrás dele. o homem se enfiou na barraca de roupas que dividia o apertado espaço com as pessoas, um buraco se abriu na rua, a normalidade fora interrompida. por um minuto, as pessoas todas pararam, e se esqueceram qual a próxima loja que tinham que ir ou o horário para chegar logo no metrô, mas ninguém demonstrou reação alguma, além de terem os pensamentos - que comumente tinham um volume ainda maior que a histeria e a massa sonora da rua - agouramente interrompidos. apenas um moço se manifestou, e bravo, e louco da vida gritou: calma lá senhor, vai tomar seu remédio, o homem é trabalhador, tá louco? o homem é trabalhador. lembrei-me instantaneamente das horríveis notícias sobre pessoas serem lixadas por outras, trabalhadores por outros, negros por outros, mulheres por outras, espécimes praticando atos coletivos de crueldade imparcial com a sua espécie. meu pai mesmo havia presenciado algo assim, e fã que era da violência e inimigo número um dos ladrõezinhos, tinha se assustado com a voracidade que as pessoas todas, no centro de campinas, tinham ido bater num menino, de como um gordo sentou no magricela e bateu-lhe até ver sangue. no entanto, já não posso avaliar com clareza a impassibilidade que eu presenciei, e a senti também nos meus ossos e no meu ser como um todo, escolhendo apenas uma neutralidade besta, um não tomar de partidos, um não ouvir de gritos e correrias nas ruas. uma existencialidade pura e besta, de eventos isolados em si, de coisas que acontecem, que acontecem por acontecer, moleques esfaqueados ou não, homens brancos paranóicos. no ponto de ônibus na teodoro sampaio, fui interrompida da minha leitura por um homem grisalho que me pediu para ler um papel. li-o e dizia algo como: as pessoas nunca estão acostumadas a sorrir (então sorri, terrivelmente constrangida com o que poderia vir e ele me disse: viu, você já sorriu) e uma baboseiras sobre sair do celular e sorrir e abraçar estranhos, meu tom de voz diminuía palavra a palavra, terrivelmente arrependida de ter me enfiado naquela situação só porque ela se apresentou a mim, concreta e inegável, só porque eu não podia virar o pescoço e continuar a me questionar se eram meninos ou meninas sapatas ou meninos trans ou o quê, só porque a situação era ridícula o bastante para ser apenas aceita sem perguntas e ao final, o homem me deu um abraço atropelado, interditado por um dos braços meus que não estavam, afinal, prontos para abraçar nenhum desconhecido na rua, um abraço que ele pretendeu forte e eu afrouxei - como se comumente se faz; e eu poderia ficar louca da vida, brava e dizer, entre mil coisas, eu sou uma mulher, como é que você me abraça assim, como é que eu sei que você não quer apenas um motivo estúpido para apalpar meu rosto, mas o homem deu um jeito de fazer o sorriso e os olhos mais afáveis, mais amáveis, mais sem maldade alguma possível e disse: como foi, fácil ou difícil, eu disse estranho, ele disse: agora esse papel é seu, e você deve abraçar algum desconhecido no ponto de ônibus e saiu andando, quase correndo, envergonhado pela minha ausência, pelo meu constrangimento, sem querer ver a resposta nos meus olhos. ainda permaneci alguns segundos surpreendida e ainda me senti na obrigação de talvez seguir a situação, fazer o que ele tinha falado, abraçar um estranho?, simplesmente porque a situação existia, porque tinha ocorrido comigo e porque eu estive triste; mas é claro que não, que eu não iria perpetuar essa corrente do bem estúpida, que eu ia quebrá-la, e mesmo se quisesse, eu não teria a mínima coragem, se tornando um tormento todo particular ter que fazê-lo, sem nenhuma troca aceitável; guardei o papel como marcador de página, coloquei-o em frente às letras do livro que eu estava lendo; era Nadja do Breton. 
talvez haja aí algo surreal ou é só que o surreal se apresenta da maneira mais patética possível? foi este abraço que me arrancou de forma tão bruta da minha impassibilidade e da minha imersão e que me lembrou, então, a correria da manhã, e o homem supostamente roubado da sexta-feira. a única conclusão que consegui alcançar, com um custo que não sei ainda medir, é que a existência é plena de situações e vazia de significados; é que é melhor simplesmente existir, do que existir com perspectivas. as perspectivas lembram-me papéis repicados, e pouco a pouco, repicam um pouco mais do que eu queria, um pouco menos do que eu gostaria, tornando-se a linha do viver nada mais que uma forma bruta, irreconciliável e irregular. invisível, não porque eu não consiga ver, como antes, mas invisível porque se faz sem padrão algum, sem conformidade, sem contorno; há um preenchimento, e no fim, é isso que me cansa. cansou-me, irresoluta, a cáustica dos seus sorrisos e os olhos pesados dos seus não-dizer. despi-me finalmente da capa da vitimização e não, eu não ando mais me preocupando em ser vítima, e em sofrer e chorar pela minha falta ou pelas minhas incapacidades olha. eu não quero mais a sua dó; eu não quero pena, eu não quero que chorem por mim, eu não quero que esfreguem a mão nos meus cabelos, dessa maneira colossal e mangnânima, mas sem um pingo de um carinho exato. hoje, ao comprar máscara capilar, a vendedora que tentava me vender o produto, passou a mão nos meus cabelos; eu senti medo de me arrepiar, mas foi suave e eu não arrepiei (por todos os demônios, estou um pouco cansada desses arrepios bruscos, dessa brutalidade que o meu corpo guarda e que vocês todos despertam tão fácil quanto tirar uma migalha de pão que porventura caiu na sua blusa), foi suave e foi terno, e eu me senti quente e agradecida, ainda assim, eu queria que ela continuasse a tocar meu cabelo daquela maneira e teria que ser ela, a vendedora, pois pensei um pouco para quem é que eu podia pedir um pouco de cafuné, não, eu queria aqueles dedos desconhecidos, acostumados a deslizar por cabelos, eu queria aquele toque porque absolutamente ela não tinha intenção que não outra vender-me o produto (não tinha ódio, nem inveja, muito menos desejo, tensão, não havia dó). é claro que a única coisa que eu poderia fazer é levar a máscara, mesmo em dúvida, mesmo achando cara. mas, sobretudo, eu pensei sentindo o peso do pote de creme nas minhas mãos, o peso do livro enquanto lia no ônibus que passava na consolação, eu sobreviverei, sem a dó de vocês, pois eu sobrevivi a uma morte, e não a minha, mas que daria no mesmo e seria mesmo até pior (continuar a viver depois que a morte lhe desperta um quê, uma coisa, uma falta imensurável, algo que deve ser tão próximo quanto à matéria escura, ou a própria definição dela, depois das luzes das estrelas e antes do fim, eternamente em expansão desenfreada, sem ter qualquer motivo senão pela existência, pela existência bruta e só). e eu pensei enquanto lia Nadja, e o senhor ao meu lado fazia palavras cruzadas, e nós dois estávamos em alguma sintonia: enquanto eu nada entendia daquilo que lia (acabei de começar) ele também não entendia que palavra ia se formar na lateral, não antes de responder corretamente e organizar as palavras e seus significados, suas coisas todas, o quebra-cabeça. a literatura mais surrealista é a palavra cruzada, acredita?, nada como palavras por si só para resultar em outra palavra que nada guarda relação com aquelas, mas que, enquanto o senhor toca com a caneta o papel, e eu toco as palavras procurando entendê-las, esforçando minhas capacidades, relações inimagináveis se amarram ali, herbário com impotência, impotência com vestido. nas minhas leituras completamente aleatórias, me deparei com métodos infindos e um problema não existencial se fez tridimensional na minha frente: se Breton pede que a literatura não seja fabulesca, mas se Dostoiveski escreve a partir do romance as coisas mais terríveis, que fisgam o fundo, se Virginia escreve seus personagens de uma maneira que posso sentir o cheiro dos seus dedos (lavanda e tabaco), se Miller foi tão autobiográfico que eu não faço a mínima ideia de quem seja, nem se existiu, e duvido mil vezes que aquilo possa ter existido, e se, e se, esses tantos métodos e asserções, correções históricas, afirmações protuberantes, frases iguais com sentidos completamente opostos, todos os meios e os métodos me invadem (e devem invadir a todos) e existiram tantos! que me é impossível decidir-me por um, que me é impossível saber o que é contemporâneo, o que é visionário e o que é retrocesso, tudo está numa única pílula temporal rodeando minha cabeça, minhas parcas capacidades, o fato de que falta algo em mim (não, não tenham dó), rodeando meu corpo, me atacando e atarracando sobretudo. sobretudo, todas as coisas já parecem existir, já parecem ter sido feitas e refeitas, mas continuamente, a vida corrente é insana e ininterrupta, não está morta, nem numa pílula, mas tem presente e os ecos do presente a cada segundo atravessado; a vida acontece, uma travesti correndo, menines correndo a fazer injustiça, um homem que dá abraços porque não sei motivos, uma carícia capitalista, todas as coisas me que deixam estupefata, surpreendida, finalmente, surpreendida; ainda que eu não me mova, ainda eu não possa, nunca, acreditar numa sequer palavra de alguém, de ninguém, nem julgar, nem correr atrás, nem ajudar, ninguém, ainda que eu continue impassível, sorrateira, que eu seja uma massa indiferenciada de pessoas, as situações me atravessam; e me tiram do meu lugar simplesmente porque elas existem, e tão encaracoladas que estão, não podem nunca ser compreendida sem seu todo, muito menos em suas partes. elas são vislumbres; mas também deixam seus rastros, elas permanecem, e existem, graças que existem; e eu existo, existo também, sei disso, por isso ando querendo dispensar suas penas, eu estou finalmente surpreendida pelo fato de que eu existo e que existir é tudo.

agosto 12, 2015

é com certo pesar que te escrevo por aqui. preferia eu escrever à mão belas palavras rechonchudas flutuando em papel sulfite branco (talvez um canson, para durar uma eternidade), mas não posso te dar papel algum onde caibam as voltas que sinto dentro de mim. não seria uma carta de aniversário. não seria uma carta de amor. não seria uma carta; tenho medo delas e das memórias à tinta fresca que exalam. tenho medo que elas se instalem pela eternidade. tenho problemas com a eternidade. as angústias; não são eternas. felicitações ingênuas em papel de carta; sim. talvez eu te garranche um te amo qualquer, torto; nunca fui boa diagramadora; mas eu estaria a cumprir protocolos. 
e eu quis muito que nunca chegássemos a cumprir protocolos por meramente fazê-lo. eu quis muito, e no entanto.
não chego a pensar, sequer, se você se lembrará de mim daqui a vinte anos, com nostalgia ou saudade irônica. como uma mancha esboçada - eu espero que seja mais, eu espero que eu tenha te marcado à queima-roupa, eu espero, contudo. eu parei de lhe escrever há um tempo; as coisas escritas doem mais. invoco certos dons esquecidos por mim, eu preciso fazer com que você se lembre por quem você se apaixonou. besteira; eu não sei por quem você se apaixonou. eu trazia um ar calmo e uma dor trágica, ás vezes meus olhos embaçavam, mas não inundavam. uma vez ou outra, você me viu aleijada e você deve ter gostado da minha dor curtida; como azeitonas em conserva; as minhas dores. eu nunca escrevi sobre o que me doeu mais; eu escrevi sobre o que era palpável. diversas vezes eu pensei em escrever sobre nós, sobre eu e você. mas as coisas, para escrever, é sal marinho na ferida aberta. eu escrevi sobre o que aquilo que posso tocar; e o resto todo, eu senti. eu gostei de só sentir com todo o meu corpo - meu nariz escorrendo e minha vagina molhada, tudo que se diluiu em água, nesses meses todos, tudo que veio a ser regado. eu gostei de enclausurar minha paixão e a minha mágoa no meu corpo; eu gostei de não ter que expelir isso em palavra; eu gostei de me empanturrar, de me estafar do nosso ninho. eu me sinto viva. por isso se escrevo, é porque preciso lhe dizer alguma coisa; porque estou pequena; porque queria te presentear; porque queria dizer que. mas eu não sei; por favor; eu não sei, eu não fui abençoada por nenhuma musa; eu não sei. 

nosso amor é encravado de crise; 
eu te disse incontáveis nãos seis e você continuou apaixonada por mim; você enfiou-me agulhas; você me perfurou com o seu desejo e com o sangue que eu arranquei de você; eu sei, de tudo isso, eu sei um pouco, o que me contaram, mas eu sei mais das suas agulhas, eu sei mais do como é que eu fui cair de boca no seu desejo; foi a lacuna, foi o buraco que você cavou em mim; foi; foi a dor.
mas é, ainda é; eu continuo com você, eu não sei porquê diabos eu continuo com você, eu não sei porquê depois de todo esse tempo eu nunca fui capaz de te dizer, pode ir agora, você é livre, faz o que teu peito manda. porque você me segura; a sua voz me segura, o teu jeito de contar as coisas do dia, o teu jeito de me comer, o teu jeito de me olhar nos olhos, o teu jeito de me segurar; eu te sinto na minha pele, e é isso, é isso, eu não sinto que posso morrer, não, não é isso, eu sinto que eu talvez minha pele abra, que sobre a terra eu seja um músculo e gordura, carne viva, eu sinto que você me esfola, e se eu continuo, é porque é o jeito que arranjei de me sentir viva, de entrar nos teus buracos, nas tuas glândulas, dentro da sua buceta e do seu cu, de me encaixar no seu corpo, de te conhecer a ponto de nunca mais te esquecer. a ponto de nunca mais te esquecer. eu queria te tocar inteira, pra que a sua memória grude no meu corpo, pra que eu não possa te esquecer.

mas você desliza, escorrega, se desfalece. de repente, é uma sombra, um fantasma, de repente, tão dura quanto uma pedra; tão dura, real e cruel quanto uma pedra. e é isso que me fez te agarrar na minha pele, que me faz querer entrar dentro dos seus buracos; olha;
eu tenho um amor dialético por você.

esse quarto: essa cama, esse chão e esse céu turvo, e a fuligem dos carros que entra pela janela, são o ato, o palco, o júri e a testemunha da nossa dialética.

eu tenho um amor impuro por você, rançoroso e rancoroso, gorduroso feito manteiga de segunda; de mágoa e de falha, eu tenho um amor escroto por você.

eu tenho um amor jovem por você, físico, ingênuo e melodramático, que dá dores no corpo, me faz perder a cabeça;  eu fumo cigarro e choro um pouco num dia de trabalho; meu coração dói (e isso não é bem uma figura de linguagem de segunda). 

eu queria ter te feito qualquer poesia; eu queria ter te comparado à várzea de um rio; que inunda a terra seca que o rodeia; e que a terra, arrebatada, não tem escolha; ela se deixa ser enlameada; e que a terra, embora agora invisível; sabe que será semeada; mas eu adquiri um receio, o de estragar ou não fazer efeito; o de não ser capaz de te atravessar.
(minhas terra é que enlama tuas água/tuas várzea é que inunda minhas terra)

te dedico, bonitinha.











abril 14, 2015

hoje eu tive um sonho terrível. tinha uma irmã, que não era sofia nem gabriel, mas um pouco dos dois, se chamava maria ou bia, e estava muito doente, quase morrendo. estive na casa dos meus avós. tirei ela do carro. na hora de tirar, o pé dela se enroscou. levei ela para nossa antiga casa. só lá percebi que havia cortado seu pé. a casa estava vazia. não esguichava sangue, mas parava no tornozelo. maria ou bia não chorou pois estava morta ou à beira da morte, sem nada sentir. foi completamente terrível perceber o que eu tinha feito tempos depois. eu apenas chorava. como eu não percebi o sangue?
a imagem do pé cortado me acompanhou o dia todo.

março 25, 2015

rua

olá doutora, como vai? senhora.
e as pernas, doutô?
vai aonde, sinhô?
maria de quê? maria do josé.
não, maria josé.
sei, maria. josé!
zé num voltou não.
ah é, que se sucedeu?
caiu.
caiu?
caiu.
caiu, de novo?
do andaime de novo?
todo dia, santo dia.
tinha até aquela música.
merdinha.
todo dia, merdinha.
todo dia, santa.
reze três vezes, filha.
mas não há bem que repare todo esse mal!
que mal, filha?
sinto um malestar quando piso lá.
todo dia?
é, sim.
todo dia.
acho que é o jeito que botam os olhos em mim.
sei.
não é não preguiça ein, fia?
preguiça eu tenho, vózinha, mas quem num tem?
importa é que se come.
sim.
sim, come.
mmmmm.
menos barulho, sinhá.
menos barulho de mastigar viu?
queria só um pouco de quieto.
isso não existe, rapaz.
até o quieto tem um zumbido.
eu ouço, todo segundo, o zumbido.
porque mesmo quando a gente dorme, os verme trabalha.
é mesmo. 
um quieto só.
deixa disso, vai trabalhar.
vou indo.
bom te ver.
bomtever.
au revoua.
oquê?
nada, não.
vai com deus.
fica com ele. 
me devolve.
o que?! deus?!
deus e o resto que cê pegou de mim.
olho da rua.
o olho da rua, vi.
é um olho bem grande e cheio de veias.
ele tá sempre aberto. sempre espera.
sei.
sei.

sei não, o olho da rua.
nunca vi.

fevereiro 05, 2015

uma lista

uma lista!
uma lista - é claro.
das minhas privações
da falta de propriedades
de prioridades
privadas ou sobre qualquer coisa
públicas também

uma lista seria grande o bastante
opressiva e assustadora
de olhos juntos e joelhos cerrados
- minhas gengivas inflamadas
e os dentes deles sangrando
a sua lista também seria
ainda mais opressiva e derrubadora
compararíamos as listas.

compararíamos e morreríamos
- enfim!
de comparação medíocre
eterna e desolada
infrutífera e descascada
bem portada num deserto
morreríamos enfim
talvez com algum alívio
porque qualquer um suspiro
estrangula os ossos miúdos
ter que viver todos os dias

sem chão nem revolta
uma mínima ode à vida
ou aos explorados
ou morte aos exploradores
morreríamos de cabeça quente
de saliva seca e silêncio sagaz

nossos tesouros perdidos e contas de banco esvaziadas
completamente - 
nenhum nome paira na eternidade
o universo é univoco
flutuamos sem destino nem espaço
pairando ora ou outra na órbita estrangeira
sem nem sequer se dar conta
ou perceber a indiferença

uma lista! uma lista das minhas privações
e dos meus arrependimentos
e da minha vergonha de não ser tão privada
e assim me manter trancafiada

uma lista dos meus dias:
meu café amargo e ruim, o pó barato,
o pão,
a cama,
a dor nas costas,
a tv desligada,
a internet sem fio,
a internet caindo,
a água,
a torneira,
o banho,
a cama,
a cama,
a cama,
o jogo estúpido
o vivo,
a transa,
a transa,
a cama,
a cama
a cama.

impossivelmente se escreve
não resta qualquer coragem
de pisar na rua de novo
não me resta nem vontade
a cama,
a cama
a cama.

privações

1. estou fazendo, não sei porquê, sonoplastia na escola sp de teatro. cheguei na terça-feira e sentei perto das meninas que já estavam em módulos avançados. elas disseram que nenhum teatro grande contrata sonoplastas mulheres. só contrata homens. tive a vontade súbita de desistir imediatamente. não consigo mais, a mesma batalha, em outro território. compulsoriamente, a maioria vai desistir, uma ou outra mina zika vai conseguir. é claro que me apontarão estes exemplos. não que eu seja obrigada a ser zika. seria melhor se eu tivesse nascido com vocação pra ser atriz ou dançarina.
2. estudei numa escola técnica e pública, no segundo ano do ensino médio, uma professora de português nos disse que a gente nunca saberia o que a elite consome culturalmente. que eles ouviam coisas que nem imaginávamos, liam coisas que nunca saberíamos o que era. que ela, nem a gente, saberia o que era. que eram coisas maravilhosas mas complicadíssimas de entender. até hoje eu me pergunto se cheguei a conhecer a cultura erudita e elitista. eu não sei se ela considerava gente da USP gente assim. eu não sei onde estou. o meu buraco da impotência compete com o ódio da existência deste abismo. fiquei espantada quando ela disse aquilo. fiquei amargurada quando me disseram que eu não podia conhecer tudo que havia de complexo e maravilhoso no mundo. meu ódio dela se transfere ao ódio desse culto do erudito. ela criou um monstro terrível feito de muro de pedra, ela, sem saber, despejou a impotência que sentia todo dia, sendo mal paga e mal quista, sobre adolescentes cheios de energia e vontades; ela me fez enxergar castas, sem nenhuma saída ou revolução, a não ser a completa ignorância.
3. tenho medo de algum dia ter criado monstros terríveis de impotência aos meus alunos da periferia. peço desculpas desde já e trabalharei na possibilidade de acabar com tudo isso e recomeçar outra coisa. vocês que empunharão.

janeiro 22, 2015

(sem título)

olá.
olá, amor.
eu não sei, mas.
mas o quê?
eu sinto falta do calorzinho.
ahn
do seu calorzinho. do seu corpo cobertor.
vem cá. vai ficar tudo.
não, mas.
eu já te disse, então. isso é tudo.
(ela estende as mãos)
aham. eu gosto.
(um beijo)
ás vezes eu não sei se eu quero. se eu consigo. 
(ela dá de ombros)
que é?
fala.
eu também não sei, é isso aí.
(silêncio)
(mais silêncio)
tá ouvindo, eu amo essa música.
sim, eu também.
que bom.
(silêncio)
que vida torta.
você acha?
você vê lá na frente?
eu não vejo.
eu não vejo um palmo na minha frente.
muita neblina, né.
é.
(silêncio)
vai devagar.
ok, eu vou tentar.
mas o que?
eu não disse nada.
por que você vai tentar?
nada.
eu queria só chegar logo.
entendi.
(freio, os dois corpos vão para a frente)
o que você fez? (grita)
eu não sei, tinha alguma coisa (grita)
(silêncio)
por que você tá chorando?
(silêncio)
ein?
você acha que a gente matou algum bicho?
você acha?
eu vou sair daqui. 
é melhor.
(silêncio)
você continua chorando.
sim.
tá tudo bem.
sim.
eu tô aqui.
sim.
que tormenta.
(nada)
quanta água.
vai passar.
é.
você me beija, quando puder.
como assim?
você me beija.
sim.
é claro.
sua boca é linda.
(sorriso)
melhor a gente parar.
é.
vamos esperar.
vamos.
tudo bem.
tudo bem.
tá 
tudo bem.



janeiro 12, 2015

dos pampas

a pilha de louça suja
os bois mugindo

o pasto não é a fome
(nem o sertão é a fome)
há quem não tenha louça

nas juntas
nas esquinas, nos vincos
- em qualquer lugar
a miséria resiste

capim como lastro
boi dono do mundo

os subúrbios, as periferias
os laços intactos
a miséria persiste

verme da terra
batatas de vermes