a praça está um em polvorosa, mas quando ela não está? jana se espreguiçou igual um cachorro vira-lata. os homens andam agitados e há muitos tipos deles por aqui. os débeis moradores de rua buscam o sol e se espalham pela grama. eles também cheiram e fuçam e ás vezes latem. mas latem quando a lua vai alta no céu, porque de dia há os homens fardados que andam chacoalhando penduricalhos negros nos cintos.
eles olham e cantam a rua e rodopiam e jana se esconde entre os negrumes escuros que a sombra da noite dá, porque não quer incomodar, tampouco ser incomodada. ela está alerta e sadia de noite, mas todo passo é um risco, então vai na cautela. as luzes dos postes ora atrapalham, ora ajudam; as luzes amarelas recortadas mostram o pedaço do chão e escondem o pedaço do céu. jana se interessa pelo céu, mas os homens preferem fincar os dois pés no chão, e também o corpo, e também os pensamentos.
há os homens que passam andando apressados, aperreados com vontade de mijar também, e estes não deitam na grama, sequer pisam na grama, eles andam pelos caminhos ladeados das círculos de ferro fino; jana tenta compreendê-los, porque o caminho pela grama é um caminho curto ou um caminho que se faz e refaz de diferentes maneiras. e os caminhos ladeados, que são os caminhos cinzas, os caminhos de pedra, eles dão sempre no mesmo lugar, na mesma maneira. jana repara que estes homens tem sapatos e talvez não queiram sujar seus sapatos na grama. jana olha para os seus descalços, suas unhas são longas e pretas, jana pensa que deveria tomar um banho e talvez calçar uns sapatos; assim talvez ficasse atarefada como os homens dos sapatos.
jana só pode tomar os banhos tarde da noite, na fonte ou naquele lago; mas jana também tem medo do lago porque ali nadam uns peixes grandes de olhos esbugalhados. jana tem medo de chegar perto dos peixes e eles lhes contar maldições de outros tempos; de outras águas, jana se espanta com todo tipo de maldições; quando ouve estampidos ou o corvo piar lá em cima, ela sai correndo com os olhos espertos. jana não sabe muito bem porque sente que os peixes tem sabedorias passadas, mas ela sabe que não são todos; são aqueles grandes e coloridos, com as manchas alaranjadas ou avermelhadas espalhadas pelo corpo e aquela boca redonda delineada por um fio da mesma cor das manchas que está sempre a falar, a falar as maldições e contar as histórias, e a diluir na água o peso da História que está escrito em seus corpos escamosos igual pergaminho com aquelas manchas misteriosas. jana se aproxima sempre devagar da água do lago, sempre de noite também por causa dos homens fardados, e sempre leva um pouco só de água; fica o tempo todo a repetir um mantra que diz, peixes, peixes, não apareçam, me dêem licença, os peixes. eles eram pequenos e pareciam inofensivos, mas jana sabia que toda a gente tinha medo deles; e jana se sentia um pouco orgulhosa de si porque para olhá-los ela pedia licença e ia paciente, ela pedia licença aos deuses que ali dentro daquele olho habitavam.
jana dava muita sorte quando a lua estava cheia e refletia na água do lago; aí os peixes não vinham mesmo para a superfície, se escondiam da luz e se aconchegavam no escuro limbo do fundo do lago esverdeado. jana gostava de olhar o reflexo tremulante da lua, mas o que lhe dava alegrias infinitas é que podia se ver, como um espelho; jana, fêmea empertigada, gostava de ver como é que se parecia, como é que ia a sua aparência. ela ás vezes se espantava com a sua forma, e também se achava um pouco diferente demais dos demais.
as mulheres que passavam pela praça também se dividiam um pouco entre as da grama e as do caminho; as do caminho eram as senhoras e as meninas, calçadas e com sacolas, as da grama eram jovens provocativas que ficavam por ai esperando a noite chegar. como jana, essas jovens também habitavam a noite, porque é na noite que despertavam e colocavam seu corpo a trabalhar; elas andavam e chamavam os homens e estavam arrumadas. elas ás vezes pareciam arruinadas; mas sempre voltavam para a noite, sempre voltavam para a noite.
jana acreditava as mulheres todas se pareciam consigas mesmo, e com ela mesmo, e por isso que quando se olhava no reflexo, podia vê-las todas, iluminada pela lua cheia, que espalhava um canto suave, mas de voz rouca, como o de uma avó que não entende mais o sentido das palavras, mas as canta para continuar existindo; sua vida, sua história e sua divindade.