fevereiro 21, 2016

resquício, sobra, lua

as marcas que deixo no livro que você me empresta. são umas marcas escuras, no canto da página. olho meus dedos pra ver se eles tão sujos, não sei, mas deixam tudo empestado, tudo negro - negra peste.
fico cinquenta anos sem escrever, se paro e leio qualquer coisa que me desperta um quê me dá a vontade mais danada de sentar e escrever. vou engolindo toda a coisa, toda a coisa do artista, de como ele escreve. estilo próprio é bobagem, pra mim, é bobagem.
dias desses pensei finalmente e verdadeiramente: talvez não seja bom, isso aqui tudo isso aqui.
mas agora deixo resquício essa sobra empesteada deixo guardado.
o quê é que tem coisa e muita coisa que me dá vontade de escrever. de escrever qualquer coisa, e aí eu desanimo cinquenta anos de novo.
se eu todo dia uma história de formiguinha escrevesse.

tenho dado abertura nesse dia e nos outros as pessoas que aqui estão mas andava deixando meio amortecida.

luara tinha nome de cachorra e sua cachorra se chamava luana. luara era redonda, sim, feito a lua, feito alguma premonição da mãe bruxa. a mãe era homeopata, furava de agulha, agitava as mãos e falava em tom sibilante - minha filha é filha da lua. era filha de lua e pouco filha de mãe bruxa que se dedicava a cuidar das energias do mundo e deixava a lua encarregada de pentear os cabelos da filha. deixava ás vezes a lua cuidar da comida da filha. os cabelos, a lua como boa deusa, tinha dado lá o seu jeito: os fez duro e para cima, de um jeito que não dava pra pentear, só crescia feito árvore. a comida, a lua pouco fazia. então luara se agarrava a luana e as duas andavam pela rua, a percorrer uns canteiros, uns pé de frutas. luara tinha os olhos redondos, e até os dentes um pouco arredondados, e até os seios quando cresceram, também eram, e a barriga era redondinha, mas luara era escura. na escola, quando brincava de ser deusa da lua, as menina se espivitavam, colocando a mão na cintura, bamboleando-a e os dedinhos curtinhos: nã nã nã. luara, é deusa da terra. aqui tua árvore, pingavam os dedinhos nos crespinhos no topo da cabeça de luara. luara assentia, meio abobalhada. costumava não discutir e se esparramava no chão, terreava, enquanto uma cabeça loura, embora toda fina e ardilosa, iluminava o céu da brincadeira. ela perguntou a mãe, um dia que ela cantava umas vogais e luara quase caia no sono, como é que podia ser escura e ser filha da lua. a mãe parou de cantar e olhou bem miúda, a mãe era pequena, dizia que era um broto de baobá, de uma árvore grande. levanta luara e não esquece o que eu vou te mostrar. luara levantou a contragosto, já metida nos lençóis cheirando a quente, e a mãe ali na janela. aquilo que é branco é o que todo mundo vê, luara, mas a lua tem o outro lado, é a face escura; essa face ninguém nunca vê. e por quê, mãe? porquê a lua ali esconde os segredos, essa face ninguém nunca viu. nem galileu? nem ninguém, nem você, nem os orishás? a mãe franziu o cenho e deixou luara sozinha vendo a lua. disse por último: esse é o mistério da lua e foi ela que deu a forma à você, e ela queria que quando a gente olhasse pra sua face escura, a gente visse a face oculta da lua. esse modo de dizer luara achava que não era do feitio de sua mãe, depois de uns anos, olhando os olhos gentis de luana, não sabia se tinha inventado tudo isso. mas agora que podia separar as coisas enevoadas e as coisas brutas a mãe já tinha ido, sido tomada por um câncer que tentava curar com bruxaria. antes de morrer, ela disse, deixarei de virar um broto. a mãe tinha os olhos arregalados e o pescoço todo inchado, com uma bolota de dar dó; era a semente da nova árvore que ali crescia. luara havia acreditado que podia revelar os segredos da lua e andava por ali e por aqui dizendo as verdades que ia sentindo no seu pulmão. se a mãe fosse viva, diria que a filha também era dada a bruxaria. mas luara não sabia, e foi ser atendente de balcão, foi trabalhar no mercado, foi fazer unha no salão, foi até atendente de lan house, foi também garçonete. luara sentia uns ímpetos da verdade e largava, saía, permanecia pouco no emprego. depois da escola e até durante a escola luara tinha poucos amigos. no último ano luara não tinha sequer amigos. revirando as gavetas a fim de saber onde é que se metera os amigos, luara chorava ás vezes e sentia saudade de carinho, saudade de abraço, ela foi dar de focinho com luana. luana tava magra e faminta. quando era um nenê luana era gorda e brincalhona e luana recebia carinho todo dia. depois luana tinha de procurar comida com luara. depois luara ficava muito tempo fora de casa e luana tinha de caminhar sozinha. e procurar comida sozinha. luana brigou na rua e até fornicou a contragosto. quando ficou prenha luara nem viu. luana deu luz aos filhotes sem ninguém nunca saber, seguindo o instinto. e quando eles nasceram e eram pequenos e rosados, estava frio demais, e choravam demais. luana os enterrou. quando luana desenterrou eles estavam mortos. luana não chorou. não, porque não sabia como é que ia procurar comida pra ela e pros filhotes e qual a cara da luara quando ela visse aquela meleca toda. no começo, luana tentava chamar atenção de luara, depois esmoreceu. sentia os ossos chacoalharem dentro do corpo e ia ficando velha. luana lembrava bem pouco da sua vida, não sabia dizer se tinha sido ruim. só não lambia os beiços de prazer. ficava agora longas horas com a cabeça entre as patas contemplando o nada, pensando no vazio. nem os passarinhos a despertavam dessa meditação profunda que aprendera com a vida. a vida tinha lhe dado esse presente, para ela poder viver, e de certa forma, viver pouco, era economia instintiva. quando passava o caminhão de gás, luana mexia as orelhas a fim de escutar, mas não latia. quando ouvia o silvo raspado da barata, permanecia. foi num longo minuto imóvel e ausente de qualquer sentido (nem um cheiro sequer) que luana convulsionava na mais absoluta paz e serenidade, que luara olhou nos olhos de luana. e luana repentinamente sentiu. sentiu a fisgada na perna, a fisgada no coração, que começou a cambalear dentro dos ossos chacoalhantes. ainda com um pouco temor, ainda tendo aprendido com a vida que carinho não se pede, atenção não se chama, o rabo se moveu instintivamente, incontrolável. luana não podia controlar o rabo, nunca pôde; era no rabo que se escondia uma cápsula de vida, uma cápsula de vida incontrolável e tão mas tão aberta que não podia ver os horizontes. luana se aproximou lentamente, como quem tem medo, como se ela fosse um monstro ou um móvel repentinamente novo. uma bruxaria, de certo. lua na. disse ela. e manteve os dois olhos, se aproximando pé ante pé, andando menos de um centímetro. luana permanecia deitada na pequena varanda, as paredes eram nuas de concreto, para lá estendia um quintalzinho de terra batida; quando a mãe de luana era viva ali cresciam as ervas de bruxaria, e agora elas jaziam, quase todas comidas pela própria fome da luara dos pulgões; em cima dela esvoaçavam as roupas de luara, estendidas em fios de nylon não tão firmes, uma camiseta vermelha balançava insistente, uma saia jeans permanecia imóvel; o tanque branco-amarelado; uma centena de coisas grandes empilhadas, lata de tinta, vassoura, rodo, baldes, panos de chão, um martelo, pregos, pá, coisas de jardinagem, uns vasinhos vazios, umas sacolas, uns papelões, umas latinhas. luara andava devagar e enquanto ia olhava como se pela primeira vez para todas aquelas coisas empilhadas, olhava para o muro que delimitava o fim da casa, luana, puxa, que quintal pequeno. luana levantou as orelhas, soergueu um pouco mais o focinho, quase podia sentir, como antes, o cheiro de erva doce que emanava de luana. quase ela estava muito perto de estar perto de novo e luana se lembrou de tudo: da pele dela, dos olhos dela, das perguntas da pequena luara. olhou de novo para ela e viu que luara era uma moça e que tinha restado uma ou outra coisa da menina; os cabelos de árvore, ela podou, os seios redondinhos, se espremiam num sutiã, uns brincos de argola, uns olhos que tinham alguma coisa, como se tivessem se esticado pros cantos do rosto. luara ia vendo a cozinha: o fogão de quatro bocas, o azulejo decorado de azul, o chão riscado, a geladeira amarela, a mesa de madeira mambembe, depois lá fora, depois luana e encarou os olhos bem redondos de luana e viu que ela tinha agora uns olhos tristes e uns olhos velhos, e o cheiro de ossos que ela exalava, mas bem perto mesmo. o seu focinho é o mesmo, danada. e luana viu que no fundo dos olhos dela, e a pele, e as mãos bem gordinhas, eram as mesmas também. nesse dia luara chorou. chorou porque se sentia sozinha e que tinha deixado luana sozinha. hoje nós vamos cantar pra lua, como antes. e eu vou tentar plantar aqui uma erva doce. elas ficaram abraçadas vendo a lua subir no céu, era lua minguante, um restinho de lua. a luz estilhaçada brilhava no quintalzinho de terra batida e luana e luara tinham apagado a luz para poder ver bem os contornos da lua. laura pediu conselhos à lua. à parte iluminada da lua, luara, pediu, eu preciso de claridão. seu rosto se iluminava pouco, bem pouco, mas se via o branco do olho e a bola preta que era sua íris se mexendo para lá e para cá. a bola preta de luana também se mexia, e ela mexia o rabo, e sentia mexer o coração, e fuçava as patinhas e tinha dentro dela uma vontade de se chacoalhar. luana não precisava mais da meditação. agora ela podia ver e ouvir e sentir e fuçar. acordaram com o sol a ofuscar os olhos. e luara olhou o quarto-sala: o sofá que virava cama, o quadrinho pintado do mar, com moldura azul da mesma cor da tinta, o tapete, o piso frio, sentia frio e colocando por cima um cobertor disse: já já eu vou arrumar tudo isso, luana. abandonando outro emprego, tomou um banho quente, e em vez de passar a erva doce no corpo, como costumava fazer, tentou plantar. um dia esperou impaciente. ela e luara ficavam olhando pro chão esperando a planta brotar. não brotou. também ficou com fome e comeu o resto de coisa que havia na dispensa. outro dia se passou e luana já sentia de novo a coisa tod se amortalhar, a voltar o vulto preto a tomar aquela casa. procurou um canto e se escondeu. luara saiu de casa, depois voltou, depois chorou. depois procurou por luana e ela bem quietinha, querendo fugir de luara, daquele véu de morte que ela trazia. ela procurou incansável e chorando, sentindo o corpo todo doer, o olho doer, e achou a cachorra e lhe bateu e depois lhe agarrou e depois lhe disse: venha. luara e luana andou. por cem mil léguas, elas andaram, e rezavam quando a lua aparecia. luara pedia a à mãe que ela a guiasse. quando já estava tão longe de casa como nunca esteve antes, olhou para trás. e viu atrás dela os campos de cana, a estrada que ia dando num nó distante, a cidade bem longe, a fumaça que cobria. luara sentia os pés arderem e sentia os ossos de luana reclamando também, mas sabia que a única saída era andar. trazia colado ao ventre todo o dinheiro que tinha guardado, numa bolsinha bem amarrada. nos pés dois tênis e na cabeça crescia de novo o cabelo duro que não precisava pentear. ela já não sentia nada, quase nenhuma predestinação, já sentia que tua mãe tinha virado pó e poeira da mesma consistência que era a poeira que saia dos seus pés e de luana quando andavam na estrada de terra. não tenho que dizer nenhuma verdade, luana, não escondo os mistérios nenhum, talvez só você dentro desta tua barriga magra. por muito tempo eu achei que tinha de revelar as coisas. as pessoas não me ouviram, luara, e eu esqueci de ouvir você. você sempre me disse. isso. sempre me disse qualquer silêncio. você nunca nem latiu. luana assentiu, contente de ter feito bem seu papel no mundo. poderia morrer agora, mas ela queria antes cheirar as coisas que tinham para ver. as estradas e as florzinhas do campo e as cidades novas e as feições novas. os outros caminhões de gás e grilos em vez de baratas, gatos siameses por detrás de grades de grandes prédios; que ela não precisava correr atrás. e queria ouvir os mosquitos e os carros e os sons das vozes das pessoas que luara encontrava, e o cheiro de sexo que exalava. os passos, os resquícios. que dentro da barriga dela eles se acumulassem e fizessem retinir de completude os ossos que balouçavam.