se sentia como em solução aquosa. derretida, esparramada, sem nenhuma consistência. como se o corpo fosse, também, aos poucos, abandonando-a. será possível que tudo fosse embora, fossa vazar pelos poros mal tampados? deveria ter esquentado por mais tempo, talvez. ou ter congelado, pra ver se solidificava. talvez se soubesse evaporar, evaporasse assim, o sentimento que ainda restava por ele. assim isso bastaria, uma sublimação perfeita. não havia no seu dicionário de química, na verdade, conceito que explicasse a tristeza de chumbo que arrastava-se por dentro dela.
a cidade iluninava-se de esperança natalina. grande besteira, grande besteira. mas ao lado dela, tudo parecia um pouco mais colorido, e até entendia as luzes, e a felicidade alheia que o mundo se enfeitava. dentro do seu peito se acendia uma luz há muito esquecida, apagada, amortecida pelos tombos que levara. contava as horas para vê-la, para ouvir ela cantar, o samba dos seus pés, os discursos que ele esqueceu guardado nas gavetas de sua juventude. na sua casa, sentia-se pesado, preso, como refém, nas garras de sua mulher triste e arrependida. contava cada minuto para dali sair, para ganhar o mundo, e ver a menina que coloria seus sonhos. cansava-se já da sua antiga vida, e tudo que queria era recomeça-la doutro jeito, doutro lado.
o natal adentrava a cidade. as luzes, e ah! e as luzes. se refletisse o que dentro dela tinha, estava tudo apagado e silencioso. talvez um suspiro, talvez um soluço contido. não poderia aguentar. sentia a dor no seu peito a maior do mundo, era sua, e era injusta. queria tanto que ele ficasse do seu lado, queria tanto que ele a olhasse com os velhos olhos. tinha cortado os cabelos, comprado um batom vermelho, e tentado fazer regime para tirar os pneuzinhos. tinha feito o jantar, comprado um vinho. mas os olhos dele se distanciavam, a janela procuravam, para o mundo se dirigiam, e dela, se esqueciam.
conheceu-a na sala de aula. sentava-se nem na frente, nem no fundo, difícil foi estereotipar sua personalidade. não era comunista, tampouco direitista. também não era aficcionada por poesia, e nem sabia de cor a história do mundo. mas tinha um sorriso leve, um jeito de andar de pássaro, como se voasse, flutuasse sobre o chão, e entedesse levemente de todos os assuntos, sem jamais se embrenhar no profundo. gostava de dançar, e de transar até amanhecer. tudo isso, tão pouco e tão melífluo, o fisgou. e ela o olhava com respeito, primeiro, e respeitava certa hierarquia, mesmo agora. na cama, o chamava de professor e mordiscava a sua orelha. nunca nem perguntou se era casado. achava tudo o mais grande sujeira, e importava que buscasse seu delírio leve e saboroso. ele assim, era outro, estava louco.
era dia 24, e ela fez macarronada. o seu vestido era vermelho. sentou-se à frente dele, com os olhos aquosos - como não poderiam estar por esses dias? contou de como estava cansada de trabalhar no laboratório, da sua dificuldade de fazer a solução, mistura exata, que andava desastrada. ele disse que estava feliz. e os olhinhos dela, novamente, encheram-se de lágrimas. brincaram o vinho, com saúde. ela disse amor e procurou os olhos dele para corresponder. não deram bola. falaram de amenidades. até riram. ela colocou cartola na vitrola, ganhada da vó, o apartamento exalava odor de família unida. depois que acabou o jantar de natal, devoraram a torta holandesa comprada. trocaram presentes. ele deu uma pulseira. ela um abajour em forma de globo, com o mapa múndi.
lembra que a gente ia viajar o mundo, amor?
ele não se lembrava. o jantar se arrastava lentamente. sentia dó dela. via os olhos dela procurando os seus, as mãos tentando encostar sem querer nas suas, como adolescente quando se apaixona. mas não podia, assim, abandonar sua felicidade. ela era mulher forte, ela era sadia, e tinha amor pra dar. era inteligente e afiada. acharia logo outro num minuto, encontraria a felicidade que merecia. sim, ela ia. como ele, em círculos, e a vida se completaria.
acho que não vamos viajar muito, não. eu tenho outros planos.
a garganta dela emudeceu, secou. não achou palavras para perguntar dos planos. por muito tempo, ficaram em silêncio. a mesa com a tolha amarela, os talheres sujos, a torta, a árvore de natal solitária sem luzes de piscar. por muito tempo, mergulharam em seus pensamentos. na verdade, ela tentava mergulhar nos seus. não queria acreditar - não podia acreditar. hoje era natal, e eles podiam ser felizes juntos, como outros natais. ela tinha que. que...
vamos beber o vinho na cama?
sorriu, tentando ser sedutora. lembrou-se das suas varizes, dos pneus, a velhice dos quarenta que arrebenta qualquer ego diminuído e o faz ficar sumido.
eu estou com sono.
foram dormir. assim pensaram. ela ficou de calcinha e sutiã. beijou a boca seca dele. ele sorriu, constrangido. deitou-se na cama. ela fazia carinho nas costas que ele deu. esfregava os pés nos pés que não se mexiam. colocou a mão no pênis que há muito nem via. gastou sua saliva em beijos melosos nos ombros que ele oferecia. o telefone tocou.
ele se levantou num minuto. sentia a saliva dela nas costas, meio gelatinosa. não gostava. precisava sair dali num minuto. do outro lado da linha, sua menina tinha voz alegre. contava de um samba de natal que soube que ia ter, para poucas pessoas, e que depois podiam comemorar, ela estava ardendo hoje, professor, vamos comigo, porfavorzinho. entrou no quarto, e a encontrou com os olhos cerrados. vestiu-se.
aonde você vai, no natal?
parece que vai ter um samba...
e... eu?
não leva a mal, lara, mas... é dos professores da universidade... sabe... é pros amigos, só vai ter professor.
beijou a têmpora dela, sem carinho nem gosto. encontrou sua menina, a cidade estava tão bonita, ela ria e comentava da vida, ele ria e concordava, como música, ela era sua melodia, e ele acompanhava seus compasso com ritmo cadente. dançaram toda a madrugada, molhados em suor e felicidade.
ela sentou-se, com o vinho na mão, e chorou. molhada em lágrima. queria só um presente: o natal, junto dele. uma despedida. nem disso era digna? nada mais adiantaria. o fim era o presente que a vida oferecia. o mundo parecia desmoronar, em moléculas, em átomos, cada vez menores, cada vez mais diluídos e sem esperança nenhuma de voltarem a se reagrupar, de voltaram a ser o que era antes. nenhuma colisão aconteceria, a não ser das suas convicções com a realidade invicta e fria.
nesta noite de natal, choveu. tudo alagou.
(as rosas não falam - cartola)