novembro 25, 2009

fiapo

- escuta, vamos embora. vamos embora daqui.
eu não posso ir, eu não posso, mas como eu poderei falar? como eu poderei dizer que os olhos dela me agarraram e aqui me encurralaram, como posso dizer, entre as tábuas de madeira que aqui me cercaram, me pregaram, e me pregaram até a pele não poder mais esticar?
eu não pude.
porque tinha quando ela colocava minha mão debaixo do vestido dela, e eu sentia a calcinha, toda molhada, a calcinha azul, de algodão barato, a rendinha costurada, o lacinho pequenininho, a linha desfiada que desenhava na pélvis seu traço azul. e eu provava a comida, salgada, me descia a garganta, sem água, tudo seco, e ela molhada, ela toda líquida. eu olhava a jarra de suco, a jarra transpirava, era barro carcomido, como a pele dela, e eu transpirava, com a outra mão limpava meu suor, meu nervoso, meu olho querendo chorar.
eu não pude resistir.
- não posso ir.
mas não poderei te falar o que aqui me mantem, neste meio de nada, neste espaço sem fim, todo esse mato, você diz, toda essa vida atrasada, eu sei, como não saberia? estive acostumado com as luzes da cidade, estive acostumado com as putas me acariciando. mas não era o mato, não era o céu estrelado, era mais o céu do olho dela, que tinha estrelas sem fim, infinito e meu, céu para mim.
e a gente saia pra dar milho pras galinhas, as galinhas carcarejavam contentes, faziam folia, se bicavam, e ela me olhava de soslaio, um pouco daquele céu dourado. os cabelos louros e sujos lhe caíam na cara, e ela fingia rir das galinhas vermelhas, e meu sangue aqui dentro, bombeava vermelho esperando a cena seguinte, querendo ver um pouco de seu olho, querendo ter um pouco do seu corpo. pra pegar o milho nossos dedos se encontravam, se entralaçavam e dançavam por toda a cuia de barro, por todos os sagrados grãos duros, e dura tudo que era o toque dela.
sentávamos um do lado do outro, o vestido velho, sem cor nem odor, batia nas coxas, via os fiapos, fiapos por todo lugar, os pêlos loiros que recobriam a pele de barro frio. e ela trazia minha mão novamente, eu sentia os pelinhos, todos um do lado do outro, desornadinhos, e se eriçavam quando meus dedos valsavam sobre a perna dura de moça da roça dela.
- mas por que? vamo volta pro mundo! o que essa terra tem, hein?
tem o gosto dela, mas como te dizer? você não entenderia. não entende quando o sol se punha devagar, como devagar tudo nessa terra modorrenta, e a gente ia pra cerca, olhar os cavalos que é pra ver se estava tudo bem, os braços dela cruzados na cerca de madeira, cheia de fiapos. e eu me punha atrás, que era pra olhar o pescoço equestre se erguer altivo, que é pra sentir o seu corpo quente, o tecido macio da chita desgastada, sentir o gosto da pele, as coxas estáticas, e ouvir baixo seus murmúrios, sei que eram gemidos, sei que eram gemidos, quisera eu.
- eu vou e você fica aí, você vai ser engulido por eles.
por ela, como eu poderia te dizer? e tão logo nossos corpos se encostavam, eram obrigados a desgrudar, num instante o gemido transformava-se num lamento mudo e mútuo. eu fechava os olhos, e queria imaginar o que seria se... o que seria se se tudo fosse certo, e eu pudesse ter o corpo dela, se eu pudesse ser dono dela... como ser? mas ela nunca desistia. ela nunca desistia, tinha prazer e sagacidade na vida, na saliva cola pra tudo aproveitar. logo me chamava pra ir à varanda, dizia pra vó que tinha fiapos de madeira pelo corpo, e ia pedir para que eu retirasse, porque eu tinha a vista boa e danada, e também tinha feito certo curso de enfermaria. na varanda, a luz baixa, a noite logo ia tudo adensando, a vó na cadeira de balanço tomava chá e ruminava a noite fria, e ela subia a blusa, e tinha as costas cheias de fiapos - que é porque passara o tempo máximo se esfragando e se machucando nas madeiras velhas que encontrava. e eu via os fiapos, todos cruelmente enfiados na pele, e eu a imaginava esfregando-se ali, e gemendo de prazer, a dor sangrada do prazer. passava os dedos dançarinos pelas costas, tirava os fiapos com extrema delicadeza, e queria beijar ali o lugar marcado de arranhões. ia por todas as costas, e a vó ia ficando cansada, eu fazia jus ao suposto curso de enfermaria, com a gaze passava álcool na pele queimada. a vó cochilava sem saber, e a gente continuava a brincadeira, sem se preocupar. ela me mostrava os fiapos na cintura, a cintura fina e delineada, um caminho tracejado e meus olhos enchiam de lágrimas. depois passava as mãos na barriga dura, os fiapos todos ali, onde é que ela se metia, onde é que ela ia com tudo aquilo pra eu tirar. deitava-se no meu colo, e dizia que era para melhor enxergar, e eu via seus mamilos duros, pontiagudos, feito dois olhos atentos a me instingarem. tinha ali, por todo o seio, fiapo também, deixando vermelho, e ao escorregar os dedos ali, com uma precisão médica e exata, sempre de olho na avó, ela mal se contia, abria a boca em êxtase, e eu sentia o grito preso fundo na garganta. sabia, porque o meu também estava preso, quase incontido. olhando para a vó, eu lambia meus dedos, e passava de novo nas costas, na barriga e nos seios, brincava no umbigo buraco, e ela colocava os dedos na calcinha de novo, me deixava ver a pernas, eu queria que tivesse fiapo de madeira na calcinha também.
- você é idiota de ficar aqui. sabe que tá disperdisando seu futuro, sua vida. sai dessa, vamo embora desse inferno.
antes que ficasse insuportável ela levantava-se, acordava a vó, e disse que ela chochilava, e já estava normal, disse que se sentia bem melhor, mas que queria tomar leite e ir dormir. ia embora sem nem me olhar, e por isso você nunca percebia, quando aparecia para a gente fumar o cigarro de palha, e ficava olhando o mato, e espreitando, zombando do meu vô que via disco voador, zombando da ignorância da minha vó, zombando da minha irmã que era quieta e serviçal e que nunca sairia daquele lugar. eu queria que você fosse embora, toda vez, eu rezava, e você ateu, e você com seu velho discurso cosmopolita, buscando prazer nos lugares errados, eu estava usurpurado de prazer, meu chapa, eu estava no limite, e não tinha mais onde enfiar toda aquela energia. mas continuava na varanda com você até o sono chegar de vez, porque se fosse pra cama, suaria tudo, e a molharia, pensando no outro quarto, pensando no sono bom da menina, a boca aberta e os lábios rosados, secos, trincados. então é melhor você ir e me deixar, que eu tô preso aqui e você jamais entenderia.
não entenderia esse prazer subjugado e proibido, esquisito e doentio. os fiapos daquela menina são minha maior obsessão, e tudo que faço, o gado que toco de manhã, o cavalo que ando de tarde, levando os grãos até a cidade, tudo que eu faço é ela no meu caminho. é ter um tempo livre e sozinho, para que eu possa distraidamente mexer nos tecidos dela, tocar sem querer em seu cabelo, sentir seu cheiro de terra e cozinha. é comer da comida dela, com o dedo na calcinha, é poder ver um pedaço da pele quando o vestido é rasgado, acordar cedo pra ir com ela ordenar. na vaca, quando a vó tá na horta e o vô tá dormindo. que é pra ver ela sentar no banquinho, com as pernas abertas, e no escuro, no úmido, com cheiro de esterco e leite quente, de animal bufando, passar as mãos nas pernas dela, encostar meu rosto no seu pescoço, enquanto ela aperta a teta da vaca, com força e manha. é pra sentir seu bafo de animal também, passar meus lábios na nuca ereta, e ver as mãos apertando cada vez mais forte a teta rosada, e a vaca muge, e o seu mugido parece o nosso gemido contido. até que ela agita as pernas, impaciente, pega minhas mãos lentas e puxa até o centro do mundo, aquilo é o centro do mundo, a luz de tudo, você quer picar a mula e ver as luzes da cidade? eu tenho minha mula, meus olhos revirados, minha salvação e e meu pecado, eu tenho a minha luz, eu sempre tive ela, eu sempre amei ela. minha antítese, meu diabo.
- fala pra mim, fala o que essa terra te mostrou que ainda eu não vi.
foi o sangue correndo nas veias, rápido, a adrenalina, e o coração na boca, as penras bambeando, o espumar da boca, a saliva acumulando, a vontade que não se completa, o intervalo, a espera, o sangue correndo nas minhas veias, o mesmo sangue correndo na veia dela, a certeza do errado, do inferno esperado, se Deus existe fez tudo errado, eu é que não sei onde me enfiar, tudo que tenho é a minha nêga, tudo que eu tenho é a sensação de seu corpo em prosa.
o que eu tenho eu sempre tive, mas nunca descobri. muito cedo saí daqui, sem esperar dois olhinhos celestiais vierem me buscar das trevas que me meti. sempre fui casmurro cabisbaixo e a vida é grande esterco, tudo que me desperta é ter e não ter a pele de barro dela. quando voltei, quando voltei, e a saia esvoaçando, e ela me olhou, e soube também, então, e me disse no ouvido
você nunca poderia ter voltado.
e depois que eu voltei, tudo é fiapo, tudo é dor, e tudo é prazer. só o que a terra me traz é o toque dos dedos, o rio que corre na terra e que invade e que me afoga, me afoga no molhado da calcinha que esfrega meu perdão e minha traição. tudo que temos é o que temos, e não sabemos nada mais que o contato ínfimo e pouco, que o resto nos é nada, é o mato sem fim, é o tempo vagaroso, e o ressoar dos grilos, os sonhos loucos da noite. tudo que temos é o sonho e o pouco da realidade, e não poderia negar, não poderia deixá-la.
e se eu te dissesse tudo isso, hein, você ia me dizer para ir embora. se eu fosse, ela morreria, porque menina-abelha-rainha, essa, só vive de prazer, só vive de amor, se transborda toda em si, é própria dona e única, e se não tivesse quem a despertasse, ela iria embora, ela iria para sempre, e eu não poderia deixar, e eu não poderia viver com nossas almas separadas, com dois corpos que tanto se gostam! por tudo ela é êxtase: o mato que adentra suas coxas, os fiapos das madeiras, as tetas das vacas, os grãos de milho, as folhas das verduras, a colher que mexe a comida, o vapor que sai do fogão. sempre extasiada, ao esperar meu toque, ao ter a esperança, nem que seja ínfima e desesperadora, do mísero toque no seu corpo, no seu rosto, na sua alma, para derramar e inundar tudo. eu quero a seiva dela pra mim, quero o líquido que emana do seu corpo, o cheiro de terra batida do seu cabelo, quero ela inteira e sempre, e não vou, não vou embora, não poderia, nunca, jamais, deixar minha irmã, assim, desamparada e só, inundada sem mim.
- acho a terra boa. acho a terra boa e tranquila pra viver. pode ir, que um dia eu volto pra lá.