setembro 02, 2011

banho de espuma

muito agravada à mãe lavar a criança. primeiro os olhos úmidos, de um azul pouco, chorosos do iminente contato com a água. e depois a lisergia da água quente, o nenê a sorriso solto, mole feito uma massa branca e disforme, um pedaço de algodão boiando em água fervente. o nenê sem reação, nem mérito, todo entregue à delícia da água e a à autoridade das mãos da mãe. e a mãe, apesar de nova e elétrica, com os cabelos meio presos em coque, canta com a boca fechada sem saber o que cantar. acha que a música doce faz o nenê (ainda mais) serenar. mas é somente a água quente, conclui infeliz, quando tenta lhe cantar quando tenta fazer o nenê dormir.
então, se prepara feliz para o ritual minimalista. o nenê é tão pequeno e tem tanta pouca pele que é possível passar-lhe o sabonete diversas vezes. só nele, de um para outro, é possível esfregar com excessivo carinho e quase ódio. vontade de arrancar escama por escama, não só da sujeira invisível, mas também a derme cor-de-rosa, a espuma de que são feitas as crianças brancas. como as ondas que quebram na praia plana, deixando restos de espuma esbranquiçada na beira, a mãe também brincava de ser mar no corpo areal da sua criança. era possível lavar com cuidado os braços, dos ombros, os cotovelinhos, os pulsos, os pequenos dedos, dedos por dedos, passar um a um, unha a unha arrancar-lhes qualquer sujeira. e as pernas, que por ironia são maiores, se deliciar no lavar das pernas, no devagar caminho dos dedos finos de mãe por todo o comprimento de perninhas. lavar com extremo amor o umbigo e os mamilos e os lábios e a mucosa, lavar como terapia de mãe afoita. se antes lavasse o corpo de outro, com costas largas, agora sua mão era do tamanho daquele todo o corpo e podia, se quiser, com os cinco dedos levantar e subir lavando tudo, de uma vez. se quiser, mas como se pensava cuidadosa, lavava tudo que lhe permitia aquele tamanho de corpo e suspirava inquieta quando percebia que o corpo se acabava, escapava aos seus dedos ávidos. e recomeçava, achando, por via das justificativas, que sempre é bom lavar e lavar e lavar as crianças. o perfume do sabonete infantil a hipnotizava, como a própria música que saía da sua boca, como que automática, e dava pequenos beijos naquele corpinho quieto, naquele corpinho todo - que se deixava ficar quieto apenas ali. você está dando um presente para mamãe, não está? perguntava ela enquanto passava seu indicador pelo esfíncter da criança. que presente bom. beijava a bochecha, mas a criança não reagia. lavava, lavava e lavaria, passaria toda uma vida a lavar aquele corpo, sem pensar em nada mais, nem sentir mais que o presente lhe dava: o perfume, o seu próprio som, o toque macio da pele inocente da criança, o amor primário que sentia, que não precisa de recíproca. o amor tão primário que é querer passar a eternidade lavando aquele corpo, sem pausa, lavando, lavando, esfregando, e tirando dali tudo que dali é, e de repente, seu nenê era também água, água e espuma, perfumada. poderia aspirar seu nenê para dentro de si e levar tal amor primário assim, sem o peso de carregar um corpo, de aguentar um choro, uma tonelada de, eu já entendi, Senhor, entendi, aprendi, posso só levar comigo o sentimento e deixar para lá a casca, deixar para lá a matéria? e a mãe parava de cantar porque lhe vinha vontade de chorar, e o nenê sempre nessa hora também chorava, como a avisar, a punir, a chamar-lhe por seus dóceis carinhos, mas o bebê continuava mudo, boiava na água, perfumada, feito espuma, se desintegrava, e a mãe assustada, ria, desesperada.