julho 26, 2011

o bairro-fantasma

era, por assim dizer, um bairo de classe alta. as ruas arborizadas, as calçadas impecáveis - nenhuma erva daninha saía entre as rachaduras do cimento, porque também, não haviam rachaduras. e as árvores, envoltas em cercas, bem podadas; não haviam primaveras e trepadeiras por cima dos muros, pois estas se esparramam sem métrica e, tampouco, se permitem alguma regularidade. via-se muito as quaresmeiras, espécie regular que pelo nome já se sabe em que tempo dá flores. o que condizia com aquele bairro: democrático-liberal, mas acima de tudo, cristão. pairava a cruz de sua grande e antiga (mas reformada) igreja, como Deus olhando todos de cima. mas não se via cultos ou outras igrejas que praticam os berros. aquele era um bairro do silêncio, do pudor, da prudência. via-se lojas espelhadas, vitrines de bom gosto, chocolaterias de bom senso, padarias com garçonetes bem vestidas. e as casas todas bem arrumadas, muros de tijolo à vista, portões eletrônicos, todas do bom gosto clássico, reformadas para atender à demanada tecnológica do tempo presente. na rua se viam poucas pessoas, sendo eu uma delas. via-se os guardas, guardando as casas e lojas e prédios altos, sentados em cadeira, em pé, ou om cabines próprias, uniformizados, olhando feio para todo e qualquer pedreste; se é pedreste, é de se desconfiar. passavam pelas ruas os trabalhadores (assim o sabia pelas roupas que usavam), eu (que nada sou) e idosos. imagino que os idosos há muito já moravam naquele bairro, e conservavam suas velhas casas escondidas - quase decrépitas - orgulhosos de não terem vendido seus terrenos para os prédios que a tudo engoliam, orgulhosos de não terem ido morar, como outros colegas de época que se achavam espertos, nas periferias da cidade. no, entanto, só isso, e era pouco, para aquelas calçadas bem cuidadas, retas, era pouco. e por isso, não havia qualquer sinalização para pedestres, me deparei com uma larga avenida ao sol (nem árvores haviam ali), imensos empreendimentos comerciais, espelhando o espelho da modernidade, tive que andar 100 metros ou 100 km para achar uma mínima faixa de pedestre que desembocava em um comércio (ou uma rua que te levava para fora daquele bairro). e os velhos, não sei, corriam pelas ruas, para poder atravessá-las. e o que mais se contavam eram carros, carros de alto estilo, por assim dizer, arrisco palpitar que os palios e kas eram de jovens, jovens empreededores com futuro garantido. imagino que dali pouco anos, uma última vez que tivesse percorrido o bairro a pé, não haveria quem pisasse naquelas calçadas tão impecáveis: os idosos morriam, seus filhos os terrenos vendiam, e tudo que passasse pelas ruas impecavelmente asfaltadas, as máquinas-supremas (carros, isolando o contato da rua por suas rodas de borracha). e não haveria, naquele bairro, mínima coisa viva que se mexesse, tudo seria reta e forma gemétrica, calculada por uma métrica progressista, os caminhos levando à razão (jamais voltas idiotas, dois caminhos para chegar a um mesmo lugar, praças redondas que roubavam espaços importantes), as flores milimetricamente calculadas, regadas automaticamente, as garagens subterrâneas, tudo para que se evitasse pisar no chão. e os ônibus - imaginem! - não haveria por quê ter ônibus, já que não teriam aqueles que deles necessitassem, seria um bairro cristalizado, digamos, perfeito em sua abóboda celestial. quem sabe, a tecnologia nos trará realmente uma abóboda que pareça céu azul e sol tranquilo todos os dias, evitando a chuva que escorre pelas ruas impecáveis e as estraga, trazendo custos imensos à administração municipal, além do bem-estar de quem ali mora ou, melhor, trabalha. e o bairro arredondado será então perfeição, o melhor centro comercial do mundo, com seus cafés e lojas de veraneio, tudo para ser olhado e consumado, com o melhor do bom gosto clássico. trará as maravilhas modernas, e os espelhos dos prédios não cansarão de refleti-las mostrando ao mundo todo (o mundo que merece aquilo ver, especificamos) multiplicado o valor da comodidade bem gasta e enumerada. e as ruas permancerão desertas, e o outro lado, quem sabe, será caos e tormenta, mas não importa, isso realmente não importa.