julho 18, 2011

costurando

eu estou aqui - costurando. estou aqui, sozinha, te esperando. estou aqui, a linha e a agulha, na mão, aqui, sozinha. lembra-se de quando você me deixou aqui? lembra-se de me deixar aqui, a costurar? deu-me linhas, agulhas, uns novelos de lã. os novelos de lã espalharam-se pelo chão, embolaram-se. as linhas, mal sei, costuro sem nem ver. entrelaço uma a uma, sem saber, e o que tenho em mãos, são nós - só nós muito bem embolados e costurados uns noutros. nós que não podem ser desfeitos, jamais, nem pela fúria dos seus dedos. nem pelo aço das suas unhas, dos seus dentes. os nós sobreviverão, as linhas entrelaçadas aos meus dedos. fico a olhá-los - você se lembra dos meus dedos? - são finos, magros, brancos, feito uma vela de cera de sete dias. eles estão a queimar, lentamente, por todos esses sete anos, vão se finando, sem deixar rastros, se acabando entre as linhas que neles costuro. não são mais dedos, tampouco velas, por pouco são linhas, também são nós - e tampouco ganharam cor, a miscelânea de cores sóbrias que você me deu transformou-se em não-cor. tampouco sei o nome das cores, o nome das coisas. esqueci pouco a pouco, pois estive sozinha e sem quem falar. conversaria com as linhas, estas traiçoeiras linhas que me costuram, conversaria com as agulhas, estas amargas agulhas perversas que arrancam dos meus dedos sangue? deixou-me a costurar, e não deixou-me mais ninguém além da sua lembrança, e a sua lembrança, também desfeita, nem uma fotografia eu pude ter, o que eu tenho é uma certeza, ainda que vaga e consumida certeza, da sua volta, de que um dia você aparecerá para me doar o amor que me prometera. lembro-me que me falava de guerra e horrores que eu não podia ver, de coisas que eu não podia saber, tudo que eu deveria saber é o que fazer com aquelas linhas, aquelas agulhas, aqueles novelos, você disse, costure que eu volto logo. eu volto para te buscar. eu estou aqui - te esperando, costurando, eu continuo, costurando, pois não tenho mais nada. tenho medo de ter que costurar os braços e as pernas para esperar ver você de novo - e como você se parecerá? terá barba, brilho nos olhos, serão castanhos? virá sujo, virá nu? devo cobrir-lhe com esse nós que agora costuro? olho desesperada para eles, pois não te servem como roupa. choro compulsivamente pois não posso te ajudar. tenho medo de ter sido resignada somente a costurar e falhar também a isso. mas é que - me entenda - passo por grandes períodos de desmemória, de grandes brancos, vazios, e tudo que faço é costurar, por aí, costurar, sobre minha pele, indolor, sem enxergar, costurar. também não durmo, não durmo desde que você partiu. tenho medo de adormecer e você por aqui aparecer, e me encontrando assim, tão fina e pálida, adormecida, ache-me como morta, ou então, só por eu ter dormido - e não ter costurado e costurado - você vá se embora, decepcionado. já não me importo, já não sinto falta do sono, sinto um cansaço, dormente, nas pernas que formigam, nos dedos exaustos, nos olhos cheios de dor, mas tudo bem - tudo bem enquanto que eu costure e te espere, tudo bem. que eu tenha a esperança da sua volta, tudo bem, que quando voltar olhará para as linhas, e para o meu estado senil - ou só doentio - e ficará satisfeito de saber que te obedeci, que passei os dias todos costurando, sem trégua, costurando, eu aqui, costurando. é tudo que me resta, agora, é tudo que me restou desde que você partiu e é tudo que me é caro e por isso vivo e continuo, costurando, costurando, costurando.