maio 30, 2011

sono

espreguiçou-se sem cerimônia, alongando todo seu corpo peludo e laranja. queria era mesmo deitar-se confortavelmente em qualquer lugar fofo e quente, como um pouco de terra revirada sob um sol de inverno constante. olhou sem esperanças pelas possibilidades que o entorno lhe oferecia: concreto duro debaixo de um sol atravessado ou, um pouco mais longe, terra pisada sob sombra. ronronou baixo de infelicidade, achado que era muito estúpido o chão todo ser duro e firme. andou preguiçosamente, pate ante pata, até a faixa de sol em diagonal e tombou seu corpo miúdo docemente, com preguiça até de se ajeitar comodamente. dali, via o mundo como uma faixa horizontal e diagonal, em que terminasse na altura média das casinhas mal pintadas. triste seria o mundo se não tivesse por cima colorindo-o um céu azul. e triste era quando o céu se agoniava em cinza. e eram tantos os tons médios e cinzas daquele concreto, dos tijolos laranjas das casinhas, do lixo amontoado no chão, do mato que crescia sem ordenação e que de verde pouco tinha; que certo estava ele em amar a noite onde tudo eram sobretons. a penumbra lhe permitia colorir o mundo ao seu querer. e bonito era o mundo visto de cima dos muros e telhados, onde podia divisar as antenas de tv se equilibrando tortamente, os imensos varóis de roupas balançando loucamente com o vento noturno, e os pontos de luz lá em cima que cintilavam e faziam da sombra escura, prateada. ronronou feliz com a lembrança querida da noite que chegaria, e quis fechar os olhos para esquecer de uma vez que aquele dia de sol se prolongava infinitamente e tudo o que tinha a fazer era esperar. mas o sono se achegava insistente e todo o seu corpo já estava aquecido e pronto para entrar no submundo de sonhos de meia-luz. miou baixo, como querendo fazer agir a boca para que não caísse na armadilha daquele sono invencível, mas logo terminou seu miado que a boca permaneceu um pouco aberta, sem coragem de fechar. o sono era um ser carinhoso, que chegava devagar, cheio de carícias maternais, sussurrava no ouvido um tantos de ssss que era quase uma canção de ninar. sentia imensa paz dentro de si, e até o barulho dos meninos jogando futebol na rua, dos mosquitos irritantes que faziam sinfonia ao redor daquela bola de pêlos suja da rua, e até um ruído áspero que o lembrava de uma ratazana nojenta não o incomodavam mais. o sono ia baixando o volume do mundo, tudo fazia para se penetrar na vítima pretendida. e o sono, um ser disforme e escuro, tampou-lhe o céu quente e tudo ficou em penumbra, o dia tornava-se noite, a noite preenchia sua natureza felina. mal a paz se instalara completamente e seu corpo imóvel quase não se via movimento, sentiu ser sacudido violentamente. pressentindo o perigo do seu corpo, quis acordar, mas não pôde, achou então que o sono lhe pregara uma peça com pesadelos, quis chorar baixo de vergonha da sua burrice, agora seu corpo estava todo doído, todo o escuro chacoalhava-se, e não havia pontos de luz para iluminar. sentiu sua costela partindo-se, as patas de tão doídas, amortecidas, e do lado esquerdo da cabeça sentiu um líquido quente escorrer. chorou o tempo todo em silêncio pedindo por favor ao seu sono, que parasse com tal pesadelo, que estaria mais esperto, que não mais se entregaria facilmente, que até aprenderia a amar o dia. e o choro foi tanto que ouviu seu próprio mio longo e desesperado, ou seria, então, de outro gato? de repente, o escuro ficou mais denso, mas o mundo tinha se estabilizado, não mais chutado para todas as direções sem o mínimo cuidado. ficou uns instantes a acostumar-se com aquilo, um escuro denso e calmo, muito calmo, sem som nem cheiro algum, tão mas tão quieto, que lhe dava desespero semelhante à loucura do outro. quis dali sair, quis então acordar e poder ver o céu azul, o lixo colorido, até o concreto das ruas, a transparência da água que beberia, quis abrir os olhos e ver tudo de novo, maldizendo o pesadelo, mas não mais conseguia, por mais que tentasse, os olhos por vez de todas não abriam, e a boca não abria-se, e nem miado conseguia mais emitir, e demorou um tempo para descobrir que tampouco respirava, e foi quando se deu conta de que o sono tinha o levado de vez para seu próprio mundo, o de sonhos sempre em penumbra sem sol nem dia nem noite: apenas tempo infinito e igual. nunca mais a rua, nunca mais a roupa tremendo, nunca mais a brisa noturna, as estrelas sorrindo, e também nunca mais a fome, a sede, nunca mais ter que fugir das ratazanas e dos meninos malvados.
no meio da rua, jazia dentro de um saco um gato laranja e peludo, e ao longe corriam meninos com paus de madeira, rindo desgraçadamente para, mais tarde, só conseguir chorar.