dezembro 13, 2011

joana

por que comigo, joana? olhos verdes, pés brancos. abraçava as pernas em torno de si mesma, era um casulo. no meio da praia, assim. toda essa praia, para nós, joana. você aí, pequena, encasulada. no meio da praia. você sorria. olhos verdes, joana, que tortura. quando sorria, as sardas ruivas se contorciam. torrada de sol. uma pintura de Monet. joana. eu te chamava sem saber porquê. gostava de repetir o seu nome a qualquer momento do dia, joana, joana. grandes janelas brancas. aqueles dias foram poucos dentro do resto. janelas de ferro, joana! e o sucrilhos de manhã. derrubava o leite branco na cumbuca. leite, joana. lambia o leite devagar. por que comigo, joana? seus olhos me encaravam, mais mortos que vivos. fixa em você. longos cabelos alaranjados. amarrados em volta do próprio pescoço. branco. joana! quis te salvar. você tão encolhida, eu te dizia: levanta, joana. você não queria. levanta, joana, que já é dia. você, triste, nada dizia. quando dizia, dizia que tinha vontade de me matar. logo eu, joana? tinha ganas de arsênico. desde que viu na televisão: menina mata família colocando arsênico na sobremesa. era mousse de chocolate. eu e você gostávamos de imaginar a família comendo o mousse. tão banal. a morte num pouco de leite com chocolate. arsênico, arsênico. você ria, extasiada. sempre tão viciada na morte, joana. eu não podia mais aguentar, me entende? eram olhos verdes tão frios e quentes ao mesmo tempo. como ácido, joana. eu já não sou tão do outro mundo como você era. tão esquisita. criada sem pai, uma mãe que sabe-se-lá quem é. acostumou-se a ser tão quieta, joana, eu tinha rugas por todo o corpo, mas mesmo assim você me beijava. não sei do que gostava de mim, gostava de ouvir a minha gargalhada. pedia para ouvi-la e ficava perto só esperando. dizia que lhe lembrava a morte. a morte, joana. por que assim? tão bonita você era. ninguém podia a ver, joana, gostava de ler Cem Anos de Solidão, joana, você é tão bonita quanto a moça que mata mil homens. você ria, extasiada. joana. era mentira. a sua beleza era toda tão minha. feito bicho, você vivia. já tinha começado a se rastejar, e os dedos já se acostumavam a andar pela casa dobrados, feito garras. garras, joana. gostávamos de brincar de rato e gato, você rosnava, com a lombar arrebitada. choro tanto, joana, enquanto gozo sozinha. ah, joana, minha. por que você fez isso comigo? foi embora, sem rastro, para o mundo da onde veio. ria. pálida, ria. conheci sua mãe, tão velha quanto eu, os mesmos olhos verdes e tristes. não gostava de viver a menina, disse. como é que deus põe no mundo alguém que não gosta de viver, meu deus? rezava baixo, porque tinha medo de que me ouvissem. tão idiota parecia minha prece. quem irá me ouvir se a própria criatura se dá assim, ao deus que a espera de braços abertos. que deus egoísta, joana. te fez e te admirou, desde os pés brancos até os cabelos alaranjados. e te invejou e te quis, te desejou, joana. filho da puta de um deus que me tirou de você. ah, joana, se me ouvisse. iria rir nervosa e se esconder, ladra, segurando na boca um pedaço de carne crua. um bicho, que eu tinha. nua, no mar, você brincava. deitava-se na orla, esperando o mar chegar e brincar com os pêlos púberes, joana, joana. você ria e se contorcia. eu olhava de longe, me corroendo de ciúme. deus maldito, mar maldito. fazia-te tão feliz. e eu te arrastava, tão furiosa. e você me prometia: vamos nos matar, vamos nos matar. tão esperada felicidade, joana. eu não pude cumprir. vi o seu olhar esverdeado entoando maldição para o meu lado. eu não era o bastante para você, você já o sabia. se escondia, gemia baixo. queria tanto de mim, joana! por que fez isso comigo? injusto é me deixar assim, se eu pude fazer tudo o mais o quanto pude. nem todo mundo é assim, um buraco, igual você. um poço de mistério, igual você. nem todo mundo conhece deus, joana. fiz o que me era feita a fazer: meu molde é coerente. você queria tanto, joana. tinha medo, tenho medo! sempre fora compreensiva, mas você nunca pôde. percebendo minha debilidade, afugentou-se em si mesma. não pude competir contra o deus que mora em você, joana. joana, joana. eu chamava. o leite, deixa-me. olhava-me brava. era do mundo. de um outro, dizia. um submundo. dispensou-me, cobra. foi-se. entregou-se. joana, joana. parada encolhida no meio da praia, levada pelas águas do mar, rindo de febre viril, quente feito exú. quente, joana, morrera quente, juro por tudo que é mais sagrado! a tez pálida e quente, aquele deus te possuía, enfim, tinha seu corpo, joana. serva de deus, rogai por nós. serva de prazeres esdrúxulos, joana, toda a sua vida e toda a sua morte. menina estranha, olhos verdes, pés brancos, joana, joana. já não ouve mais meu chamado, já não quer as minhas súplicas. pertencente a si mesma, enrolada na sua fixação, platônica e sepultada, quente de felicidade inútil.