dezembro 21, 2011

joana, um rato morto

joana, esses dias, andava e pensava em você (eu sempre ando pensando em você) e eu o vi, ali, diante dos meus pés: o rato. morto. embolado em torno de si, os pêlos cinza, cinzas. a cabeça esmagada, e o rabo, joana. foi o que mais me apavorou: aquele rabo de cobre, como se nunca pudesse ter sido vivo. meu horror era tanto que não sabia se era pela morte ou pela vida daquele animal. como pode existir, joana, você que sempre tudo sabia, sorria serena e nada respondia, eu gostaria de segurar suas canelas, brancas, e implorar: como pode existir esse tipo de bicho, esse tipo de bicho. e como pode que esse tipo de bicho morra, joana? é injusto que morra, que morra na minha frente, a altura dos meus olhos, no meu mundo terreno, por que morreu, o pobre bicho? pertencia ao submundo, esse animal imundo, aos esgotos, rasteja meticulosamente por debaixo dos nossos pés, ri de agonia entre a sujeira do mundo todo. aquele rato, joana, morto no lugar que não era dele, a ferida aberta para quem quisesse ver: a ferida de um outro mundo, joana! eu não estive preparada para você, para este submundo, eu não me aventuraria dentro das tubulações, joana. só de pensar em te seguir por elas, longas e infinitas tubulações, "não há horizonte" você diria entredentes, "apenas ir e ir e ir" você iria e iria, porque você era parte daquilo, joana, me perdoa, eu não poderia simplesmente ir. sinto o sufoco mesmo antes de tentar, seria a morte. pobre rato. se aventurara por terras desconhecidas, por que? morrera tão logo vivera sob o sol. a morte, a morte, você ria descabida, joana, minha flor. a morte é que é divina. queria olhar nos olhos, se tivesse olhos, daquele rato destroçado: fora delícia, fora divina? seus olhos, joana, eu não pude. eu sou como aquele rato - ou você é? arreganhava os dentes para mim e saía correndo descabida. filha do submundo, irmã das ratazanas. de vestido branco e longo, cercada por todas elas, te vejo. se comunicava por granidos, havia dias. consumida por ratos. comem as veias, os ratos. comem a linfa, joana, aquilo, a proteção. entram por debaixo da pele, sem saber, vão fazendo comichão. a linfa, o sangue, se puder. filhos de vampiro, ah, joana. ria descabida da vizinha que pendurava alhos quando te viu. comeu minha linfa logo de primeira vista. eu não tinha como me proteger - eu não queria me proteger. você era toda candura, toda branca, os olhos verdes estáticos, joana minha. entrou dentro da minha pele desde a primeira, a primeira vez. ia se encostando devagar, seu corpo era tão leve e fluido, com todos os membros ia subindo como se fosse una, uma cobra, uma gosma. a carne dos lábios de uma vez aderiu-se por completo a mim: eu não pude fugir, eu já te amava para não perceber, que perigo, te achava pequena, podia cuidar de você, frágil, ai joana, que vontades de te sentir aqui. ainda sinto, dentro e quente, aqui, ainda te sinto e por isso te amaldiçoo, pequena vampira. dentro de mim, comeu meu sangue, meus órgãos, ai joana, triturou meus clítoris, alojou-se no meu coração, grande e cardíaco. bicho de barbeiro. um rato morto, o rabo de cobre torto, o bicho enviesado em si mesmo, uma bola de pêlos, circular e medonha, o rabo de cobre, tão inexistente. o bicho morto, o quanto eu chorei, joana. voltem para o mundo da onde vierem, fiquem com os deuses que te aceitam! voltem, criaturas do submundo, avessos ao sol. joana, ai, joana, se eu nunca tivesse te visto, joana minha, que seria de mim? me destruo fabulosamente nas memórias que recordo de ti. as memórias percorrem meu sangue, circulam rápido, todos os meus órgãos te amam. todos os meus órgãos vão parar, de falência de ti. que grande ironia seria, joana, se eu morresse da sua falta, se sua falta foi porque eu não quis morrer. eu, não, joana. sempre fui coerente, sempre quis viver setenta anos limpos. você me desperta aquilo que não pertence à mim, faz-me chorar com ratazanas mortas no meio da rua, faz-me chorar enquanto gozo. faz-me pensar como aquele rato, criatura de um outro mundo em meio deste, morto por querer tanto. te quero tanto, joana. te odeio tanto, ratazana.