março 28, 2010

os passos

a vó viu a neta mais nova, um ano, aprendia a andar, caía, sorria, toda gente ria. se apoiava nas cadeiras, de cara no tapete felpudo, nos móveis, nas pernas longas das pessoas grandes. a vó olhava, quieta, e sem sorrir. tinha os olhos um pouco úmidos, mas há quem diga que as vós sempre tem olhos úmidos. a menininha foi até ela, apoiando-se em tudo, talvez sendo chamada pelo seu olhar imperativo - um azul profundo, descendente de alemã, nervos de aço, coração mole. quando a meninha puxou o chale de crochê da vó para baixo, pedindo-lhe atenção, um sorriso talvez, pela graça dos primeiros passos.
- olá, netinha. está tentando dar seus primeiros passos, não é? primeiros passos. há muito tempo eu os dei, e depois aprendi a correr, e andar de bicicleta. na alemanha, andávamos muito de bicicleta, pelas ruas asfaltadas, o vento a brincar livre com meus cachos loiros. loiros, como os seus, querida. você vai ver, querida, depois desses primeiros passos, virão outros. os passos da infância, os passos da adolescência, que passos. um de cada jeito, com sua graça, e sua dor. a gente cai, sempre cai, netinha, o que não pode é chorar demais. a sua avó chorou pouco nesta vida. depois que trabalhou nos campos de concentração, nunca mais chorou. mas a vó tem sempre um pouco de lágrimas nos olhos, que são lágrimas eternas, lágrimas da velhice, você me entende, netinha?
- babababuuuuu.
- já você muito chora, tem lágrimas da infância, lágrimas fáceis, que saem por qualquer motivo e não tem vergonha de se mostrar. não me lembro mais dessas lágrimas, não me lembro de muita coisa. mas deixemos o choro para lá, falávamos de passos, não é? eu queria lhe dizer... netinha... você vai aprender a andar de muitos jeitos, e quando ficar velhinha, de cabelos brancos, como a sua avó, com esses olhos úmidos, essa pele enrugada, você, então, vai desaprender a andar. é preciso desaprender a andar, como se aprende. para poder sair dessa vida, para poder dormir o sono eterno, em paz, sem choro nem dor, é preciso parar de andar. a sua avó pouco anda, com dificuldade, e toda gente quer que eu ande, me exercite. mal entendem que é preciso também não andar mais. é preciso saber parar. descansar as pernas na cadeira de balanço e contemplar o mundo que já não é mais seu. este mundo, este mundo aqui e agora, é todo seu, e não tem nada, nada de mim, querida, você tá me ouvindo?
- vóóóóóó.
- quando ficar bem velhinha, você vai saber a hora, vai desaprender devagar, e vai ser uma luta terrível, como essa que você trama agora. é tanta dor, filha, mas também é alegria, é alegria um dia deitar-se no caixão e cobrir-se de terra, de tanta terra, para nunca mais voltar. é preciso saber dar adeus, minha netinha, sabe como é?
a menina a olhou com os olhos grandes de surpresa. o mesmo azul da avó, se encontrava naqueles olhos, que também eram úmidos, mas uma umidade nova, fresca, reluzente.
a mãe da menina, preocupada com a filha, comentou, preocupada, com a irmã:
- a mamãe falou uma porção de coisas para a menina. está gagá mesmo.
pegou a menina no colo, facilitando-lhe a caminhada, sob o olhar contido de reprovação da sua velha mãe maluca. a avó continuou sentada, contemplando suas próprias pernas, com certa tristeza retida. nunca mais andariam, nunca mais aprenderiam nada, aquelas pernas, já recheadas de todo tipo de passos e corridas.