março 20, 2010

chuva de março

era março e chovia lá fora. as gotas na janela deixavam a imagem difusa. também quem iria querer mais uma vez olhar pela janela? a visão dos prédios estava já gasta. não havia mais graça em qualquer diversão voyer, big brother do vidro embaçado dos vizinhos. mas, enfim, era um sábado preguiçoso, e henrique resolvera cozinhar. já era bem mais das três da tarde, mas o café da manhã havia sido meio dia. de maneira lenta, mexia no fogão com a pá de madeira o molho branco do macarrão. orégano, queijo. manjericão. alho. o vapor saía da panela, o perfume da comida o deixava levemente alegre. daquela alegria que não se explica, que é só algum salivar, talvez a alegria ruminante do próprio estômago, do cérebro entorpecido. por isso, olhou pela janela, olhou a chuva que inundava as ruas, e pensou, com uma certa comodidade que não cabia real tristeza, que não havia metáfora nesta frase. morava em um andar alto, de maneira que estava protegido das chuvas que ameaçavam casas em barrancos, morros, vales, próximas à rios - rio, que rio? rio era o que nadava quando criança, na fazenda do tio, rio de água marrom, marrom por causa da terra embaixo, com pedras escorregadias e pontudas, água gelada, ele e o primo tremendo de frio, caçando sapos gordos. eram grandes esgotos, tais rios da cidade, com seu caminho regulado pelo cimento em torno, recebendo todo os restos da humanidade local, sendo visitado por ratos, pelo seu dejeto que descia descarga abaixo, e até corpo de gente morta - ouvira falar. só alguma coisa na janela chorosa o fez parar de pensar nestes esgotos, e da infelicidade de nascer um esgoto - e não rio como outros felizardos, escondidos em serras inabitáveis - só alguma coisa na casa lá embaixo. podia ver o quintal das poucas casas que circundavam o prédio, e aquela era uma particulamente perto, sempre teve um quintal sem graça, um pouco sujo, de cimento batido, vassoura e rodo, garrafas de vidro de coca-cola, quase nenhuma planta. ali tinha muita água, água suja da chuva, mas quem liga pra água? uma mulher estava naquela água, podia jurar que tinha a calça arregaçada, ou podia estar segurando a saia, as costas curvadas, um pouco aflita, brava com Deus, com São Pedro, com a merda da chuva. e atrás dela vinha um homem, podia jurar que era negro, era tranquilo, vivia ironizando tudo, levava a vida na boa, sorria pra tudo. henrique queria ver algo, queria ver o que eles faziam na água suja da chuva. abriu a janela, e mal ligou pros pingos gelados da chuva em diagonal que caiam no molho fumegante. alho, manjericão e gosto de chuva. pôs o pescoço pra fora, o negro acariciava a mulher curvada, ela ainda brava. ele queria abaixar a calça dela - resolvera que era calça. tinha acordado bem, sonhara com a Debora Secco, tava excitado, sorrindo, querendo. ela brava com o mundo, ele querendo comer o mundo. abaixou a calça, a mulher virou a cabeça, disse-lhe meia dúzia de palavras feias, e ele no ouvido dela - vamos aproveitar a chuva, benzinho. podia ouvir aquela voz grossa no seu próprio ouvido, fazendo os pêlos da sua nuca arrepiarem, o molho estala fervendo, a chuva molha seu rosto. ela continua salvando algo na aguacera, talvez um gato dela molhado, talvez o tapete que colocou pra lavar - o tapete de sisal que uma tia avó fez, decidiu. ele passa os dedos pelo tronco dela, aperta a barriga volumosa, lambe a orelha dela, curvado sobre ela quase totalmente. sua orelha molhada, chuva de saliva. ela continua não querer, continua sem ligar, não quer saber do seu nêgo agora, não quer saber há muito tempo de malandro boa vida que vive às custas dela. mas ele continua, vem, benzinho, vou te fazer feliz, vou devagarzinho, você vai gritar de prazer. henrique, a boca aberta, recebe os pingos de chuva, desbotoa o botão pretaeado da calça jeans, a mão por debaixo da cueca furada de ficar em casa. henrique já não vê, a mulher se vira brava e dá um tapa na cara do negro, a mão cor de mel contrasta em bonita fotografia, ele segura o braço dela, o sorriso desparece. henrique, em êxtase, daqueles êxtases bem comuns, prazer solitário, o mesmo cérebro entorpecido, mas o pênis que agora ruminava. o homem negro joga a mulher na parede de tinta descascada, henrique continua a imaginar o que lhe apatece - como o rio que nunca será esgosto - de olhos fechados, imagina a mulher gemendo de prazer, o negro devagar, carinhoso, sorrindo, o negro, o negro, que negro. e lá embaixo, a mulher chora e grita, não vê carinho nem sorriso no estupro concedido, forçada a sentir prazer, inundada por uma chuva que nunca quis. henrique, já saciado, tira a mão e larga o braço por cima da pia, cai o molho branco e quente na sua pélvis. dois gritos pelo mesmo motivo - um de cima outro de baixo - a dor pela invasão daquilo que é quente e entorpecente. henrique cai, com a mão cobrindo o que arde, fecha os olhos, que droga. não pensa mais na mulher, nem no negro. a chuva chove dentro do apartamento, e pouco a pouco, a pia fica toda inundada. por todos os cantos essa chuva suja, inunda e imunda.