dezembro 12, 2010

restos

era um tanto amargo viver assim. vivia de restos. não de comida ou de roupas, de restos de sentimentos. recebia aquilo que exagerava na conta, uma desculpa, um passatempo. eram restos do tempo que você podia me dar, restos dos beijos que me eram reservados, restos do seu amor um tanto diluído. e você era assim: tão expansiva, tão completa, tão vazia. mal me entendia, mas eu me conformava com o resto, que era um olhar um pouco repreendedor enquanto eu declamava minhas poesias. era um pouco dos seus dedos que eu conseguia apertar numa hora ou outra que você os deixava soltos perto de mim. dedos roliços assim, pequenos que só, tinha-os ainda como restos, ficava comigo a parte da unha a me arranhar.
eu tinha o corpo todo arranhado, bem era verdade e andava, ainda, cabisbaixo. lá vai o homem maldito que não sabe o que é ser amado. não é bem verdade, se quer saber, eu tinha um pouco, uma parte, um décimo do seu amor. não poderia dizer que você não era generosa, tinha amor por todo o corpo quente e saía a distribuí-lo por aí. não era partes iguais: também não cobro isso de você, pequena, porque você é humana, e como toda boa exemplar dessa espécie, não é nada igualitária. dividia o amor assim, um exagero para uns que, na minha opinião, mal mereciam. eu ficava de longe, a olhá-la, e a imaginar como seria ter você e grande parte de você e do seu amor.
tinha ciúme, sim, mas não do outro, mas sim do amor que era desprendido, feito perfume praquele. era tão fácil, ele só te olhava. você ficava vermelha, roxa, de todas as cores, segurava as mãos nas mãos, olhava o céu, o chão e depois se derramava nele. de um jeito que é tão seu, tão líquido. e eu sentia, sem querer, as lágrimas que dos meus olhos saíam, aguados, por não poder ter todo esse seu amor.
e você vinha depois, machucada - porque há de haver dor em tanto exagero de amor, não há? - ignorava minhas lágrimas e se deitava no meu colo a fazer piadas. e eu tentava beber o máximo daquele amor que era meu, e eu tentava e tentava aproveitar o máximo, mas por vezes era tão pouco amor que não havia o que se aproveitar. e eu tentei dizer a mim mesmo que de restos era minha sina viver, que como mendigo eu posso também me acostumar a assim suprir todas as minhas faltas.
mas já não era possível, não, pequena, me descobri grande, com vontades e desejos de tudo, com uma grande insatisfação que não se consumia. e todos aqueles restos que eu sobrevivia, despejados sem jeito sobre mim, eu já não podia: eu queria mais, eu queria todo o seu corpo pra inundar no meu, pra liquifazer minha matéria de puro amor - e não mais esse ódio que transbordava em lágrima que ninguém via.
era amargo viver assim, e eu tive que me decidir, tive que dizer adeus, nunca mais te ver, deixar em você talvez alguma marca que a distraísse. já não tinha esperanças infatis, a minha falta não ia te fazer me amar loucamente, porque você não possuía esse amor pra me dar: tudo que podia ter dado, me deu, uns restos, pequenas partes, generosa mas dolorido. e fui assim, aleijado, porque já não podia.
e mesmo assim vejo pequena, que como qualquer que viva de restos que mal consegui me livrar desta aura: ainda assim, mendigando em outro plano, eu peço e reclamo qualquer grande amor e sorrio feliz com qualquer mísero carinho e assim, sobrevivo aos poucos, vivo só um tanto. e se eu escrevesse o livro da minha vida, teria poucas palavras, poucas páginas: todo o resto que me fez valer a pena viver caberia em uma solitária folha de papel.
era um tanto amargo viver assim, mas de outro jeito eu já não podia.