dezembro 14, 2010

a filha do síndico

é que nesses dias dei por fuçar minhas memórias passadas. distantes, que é pra aquelas mais presentes pararem de me fazer doer a existência. dei-me de cara com a infância bem-vinda: um mundo que tudo parece mais claro, mais dócil, mais azul. passei dias a passear com a minha infância, a reconhecer rostos perdidos. passei dias no meu antigo prédio, uns blocos quadrados de pastilha cor de salmão. entre os blocos, milhares de corredores e plantas donde ali o mundo se escondia, o mundo, então, era só percorrer os corredores brincando de pega-pega ou esconde-esconde. e havia aquela, a filha do síndico. era uma menina morena de cabelos escorridos e, talvez, escorregadios. éramos uma gangue permanente de uns sete mais ou menos, e vira e volta, quando as brincadeiras já eram tédio, gostávamos de aprontar pelo prédio. de apertar todos os botões do elevador, tocar campainha e sair correndo, jogar gelatina em pó na caixa d'água, sujar de lama as paredes brancas. e quando alguém discordava da tal, da filha do síndico, ela coloca os braços finos em torno da cintura e dizia, numa voz estridente e mandona: sou a filha do síndico, vou contar tudo pro meu pai. custei a lembrar o nome da maldita. e era ainda claro como as reminescências do passado ainda se avivam no meu peito: ao pensar naquela voz dizendo ser filha do síndico, eu logo sentia raiva da menina. eu, 46 anos, com raiva de uma projeção fantasmagórica da infância. lembrei-me do nome dela, Isadora... Isadora. o sobrenome eu já sabia, pois lembrava-me do meu pai, que sempre a reclamar do síndico, como de todo o resto, dizia o Sr. Barros, o Sr. Barros é um trouxa, e quando jogava cartas com os amigos ouvia ele contar piadas sujas a partir deste infame sobrenome. Isadora Barros. eu já não sabia aonde ia me levar essa necessidade de desenterrar um passado já tão longíquo, mas me preocupando com estas questões mesquinhas, livrava-me da tristeza e da solidão que me maltratavam sem trégua. Coloquei no google, Isadora Barros. o que me veio não foi consolador. a primeira notícia já tratava da morte do filho de 17 anos desta mãe, Isadora Barros, por uma doença ainda desconhecida que andaram matando gente de todas as idades, que os médicos preferiam chamar de febre A. o menino caíra na cama, ardera de frebe por três dias inteiros e morrera. e ali vi a foto da mãe. ainda que com os olhos muito inchados e ainda que bochechuda, pude reconhecê-la. ainda tinha os cabelos escorridos, mas agora cortados mais curtos. tinha os mesmos olhos pretos, a cor jambo, o nariz arrebitado e a pinta perto do olho direito. nem eu sabia que havia acumulado tantos detalhes assim acerca da menina. é que a raiva, talvez, faça mais memória que o amor. ou que a indiferença. fiquei a encarar aquela mulher, que fora a odiada filha do síndico, e agora era uma coitada mãe de um filho morto e especulada pela mídia. resolvi ir ao enterro do menino, que seria às 17 horas. queria olhar de perto aquela menina, ops, aquela mulher, queria saber se ela ainda me falaria com aquele tom agressivo, queria dar-lhe um abraço pela dor que nunca cessaria. vendo assim, meus problemas até pareciam mesquinhos. coloquei uma boa roupa e passei gel nos meus ralos cabelos.

tinha bastante gente pelo local. o caixão estava em uma das saletas, com coroas de flores na porta, e bancos nas laterais onde se acumulavam todo tipo de gente. dois fotógrafos conversavam distanciados. tive raiva momentânea daquela mídia infernal, uma dó daquela mãe que só queria paz, comprei todas as dores dela em um só instante. afinal, ela fora minha... amiga. a reconheci logo. estava sentada perto do caixão, olhando para baixo. uma mulher falava coisas ao seu lado, mas ela não parecia prestar-lhe atenção. ela sorriu, agradeceu e se levantou. foi até a porta de fora. eu a segui. senti meu coração apressado, agora que eu estava ali mal sabia o que eu ia lhe dizer. minhas palavras nunca iam fazer diferença nenhuma. eu era um nada na vida daquela mulher, um menino magricela e quieto que de repente explodia em palavrões. ela fumava e encarava a vista lá fora, que não era nada agradável, toda aquela grama, túmulos, anjos, marmore, flores. fiquei ao lado dela, um pouco afastado. já que eu estava ali, tinha que falar alguma coisa.
- oi...
ela me respondeu com a cabeça e bateu o cigarro no chão.
- eu sou roberto... você se lembra de mim?
ela parou e me encarou. aqueles olhos pretos, aqueles olhos pretos que se aproximavam do meu rosto e ficavam esprimidos enquanto da sua boca voava saliva enquanto gritava eu-mando-aqui-sou-filha-do-síndico. por um momento, achei que a veria fazer isso novamente.
- roberto...
- do prédio... nós tínhamos uns 9, 10 anos.
ela deu um sorriso de reconhecimento.
- você era a filha do síndico.
ela parou e me olhou por um meio minuto. meio minuto não é pouco tempo nesse tipo de conversa, chegando a ser constrangedor. ficou a me olhar, mas não olhava a mim agora, lembrava-me de mim criança, também impertinente, com manias de querer fazer o mal sempre. lembrava-se daquela época, daquela infância perdida, porque de repente, eu havia lembrado à ela que existiu certo tempo em que não tivesse que suportar nenhuma dor, que a vida era só ser filha do síndico, e a vida era fácil assim, era possível controlar o mundo inteiro. um tempo tão anterior a tudo isso que quase era impossível que tivesse existido. por isso, talvez, ela sorriu.
- obrigada por vir.
- fica bem. você é a filha do síndico.
ela sorriu, sem graça. e eu, panaca, para estragar todo aquele momento mágico, estes raros, de sintonia, como se nossas memórias tivessem se fundido em uma só e passassem como um filme diante de nós, meio que nos lembrando que, um dia, tudo fora mais fácil. e eu, panaca, sempre a fazer piadas ácidas. para nos salvar do constrangimento besta, chegou uma menina com uma calça de ginástica verde-limão e fones no ouvido.
- a tia Dê tá te chamando.
- essa é minha outra filha, Roberto. esse é um... amigo de infância da mamãe.
a menina consentiu. Isadora passou a mão no meu ombro e sorriu, complacente, indo para dentro. fiquei com a menina que olhava para o triste cemitério. achei que chorava. resolvi lhe confortar.
- seu irmão tá bem... tá num lugar melhor.
ela olhou para mim pela primeira vez, e daquela altura, eu estive de novo pequeno, e aqueles olhos pequenos pretos e esprimidos eram de repente a filha do síndico me fazendo de palhaço novamente.
- não acredito nisso tudo, nem em Deus.
ela disse isso, mas muito bem poderia ter dito, eu-mando-aqui, eu sou deus. depois de ter me recomposto, olhei com curiosidade para ela, fazendo o máximo para que meu espírito não sucumbusse àquela versão-mirim da filha do síndico.
- quantos anos você tem?
- 12.
ela cuspiu os números, olhando ainda para frente com firmeza. ainda abri a boca a tempo de falar-lhe com 12 anos é muito fácil não acreditar em Deus, sua prepotentizinha, saiba você que sua mãe também era assim, uma metida, e olha só o que resta da sua mãe, um caco, todos nós estamos um caco, sua mãe não me perguntou, mas eu também tenho dores gigantes aqui dentro de mim, e antes que eu começasse, a menina me olhou de um jeito superior novamente e foi para dentro sem nem me falar tchau. fiquei com a frase enlatada na garganta - ainda bem. mas mesmo assim, tudo aquilo me fizera bem, de um jeito que eu não sei, me fizera sentir vivo de novo, como moleque. dei uma última olhada para a convulsão que era aquele enterro e segui o rumo de casa, ainda recolhendo memórias muito antigas, decidido a reavivar estes sentimentos dentro de mim, pois era preciso sentir, nem que seja o que já há muito fora enterrado. saí correndo pela rua, porque o vento forte que me batia no rosto me lembrava os tempos de menino e me fazia esquecer o jeito lento e moribundo que eu andava ultimamente.