setembro 18, 2010

arredia

- você é tão bonita, mas é tão arredia.
ele pousou os olhos nela, os olhos muito nela, por um tempo se quedaram quietos. deixaram que se consumissem as palavras ditas, girando voláteis pelo ar que respiravam. ela resolveu quebrar o silêncio, pois o achava desconfortável.
- arredia como?
- arredia feito uma...
- uma égua selvagem?
ela ouviu uma risada sincera, esquiva, ricochetando nalguma parede por ali e voltando aos seus tímpanos um pouco desafinada e sádica. baixou os olhos, ainda incomodada, ouvindo o eco da risada e sentindo o estômago contorcer-se de aflição.
- olha pra mim.
ele levantou seu rosto e ela pôde olhar aqueles olhos dele, tão insistentes, tão leais. quiçá não fora sádica a risada, mas apenas risada, leve e solta, risada por rir e não ter mais o que dizer. ele aproximou-se dela, beijou sua bochecha, um pouco dos lábios, trêmulos lábios de medo, passou a mão pelos cabelos, um pouco dourados, um pouco desgastados pelas aguras da vida, colocou a mão no seu seio, ai, não, aí não, assim não. afastou a mão leviana e baixou o rosto novamente, em defensiva, porque não era possível dar o rosto sem dar o resto?
- você nunca fez isso?
- isso o quê?
esboçou uma risada sem jeito, tentando ser menina, embora já fosse muito mulher, tentando ser ingênua, tentando esquecer a solidão se assomava dentro de si. ele passou a mão pela virilha dela, de leve, quase um carinho, quase como pai, como irmão.
- não. eu nunca.
sorriu de novo, tentando não imaginar suas faces enrubescidas, os lábios tremendo ainda mais, controlando o impulso de sair correndo, controlando as lágrimas que desejavam saltar dos grandes olhos castanhos.
- por quê?
ele indagava sinceramente, mantinha suas mãos longe, aproximava mais o ouvido que os olhos agora, queria realmente ouvir, queria saber, e o que ela faria? teria de se explicar, o mais correto era se explicar, todas as justificativas acumuladas durantes esses anos.
- minha mãe morreu muito cedo, e só sobrou eu pra ajudar na casa. eu morava na roça. desde muito cedo, cozinhava, lavava, cuidava dos meus irmãos, do meu pai, que tinha uma tristeza enorme em viver.
- e na roça, não te amaram?
ela riu com força, uma risada chispada pelo nariz, meio égua, animalesca, dizer isso era quase uma anomalia, ele não entendia, talvez nunca tivesse ido à roça, não entendia, e pela primeira vez ela ia lhe explicar como é que a vida se portava, e como era irônica, e por isso era preciso que se risse diante de tais perguntas.
- não, eu estava sempre de aventais sujos, cheiro de comida e cândida, não há homem que goste de mulher assim. eu tomei o lugar da minha mãe, embora não fosse casada com meu pai, e por isso todos os homens tinham que me respeitar.
riu novamente diante da palavra utilizada, ai, palavras, tão mesquinhas para expressar a crueza dos fatos.
- quer dizer, eles passavam por mim, mal me olhavam, comiam a comida, também, quem ia olhar pra alguém que limpa o chão com a própria mão? não, as mulheres para se amar são outras, são mais livres. e depois tem que se trabalhar de sol a sol, não existe folga, nem final de semana, nem nada. é preciso trabalhar e só.
- e quando você chegou aqui, na cidade?
- eu tinha medo, muito medo. na minha cabeça tudo funcionava como lá, então se eu era faxineira, tinha que resignar ao modo de ser faxineira, quem é que ia me olhar com outros olhos? eu tinha que me proteger também, a gente ouve coisas quando vem de lá,
riu novamente, cada vez mais alto, cada vez mais égua.
- ouve coisas absurdas, dizem que é pra gente se preservar, que só tem gente malvada por aqui, pintam a cidade feito o inferno, e na verdade... tudo é um inferno, não é? são só os outros que vêem de fora, êta gente pequena.
ele passou a mão pelos cabelos dela, ajeitou atrás das orelhas. ele não falava nada, emudeceu diante de tanta confissão, talvez não tenha sido certo falar tudo isso assim, de uma vez, talvez ele não quisesse saber disso tudo, não sei.
- mas agora... você pode ter um pouco de céu, se quiser. tudo tem um pouco de céu, apesar de todo esse inferno.
ela voltou a baixar os olhos, ele pegara na sua mão, beijava ela, e suplicava, com aqueles olhos cheios de promessas, cheios de coisas, nunca vira olhos tão cheios em toda a sua vida, e tinha medo que seus olhos sejam vazios, sejam cheios de nada, e que ela não possa dar tudo que ele espera, que ela não mereça olhos tão completos assim, que é que se ia fazer com tudo isso?
- deixa, vai. deixa eu te mostrar o céu...
ele terminou a frase quase num delírio, e logo beijou seus ombros, com carinho, ia beijando assim, beijava os braços, as mãos, os ombros, ela sentia a saliva se espalhando, aqueles lábios, ora, também eram os lábios cheios de tanta coisa, e os dela, pareciam tão trêmulos, novos, ásperos, como ela podia também beijar daquele jeito? ele ia despindo a alcinha do vestido que usava, deixando cair de lado, e invadindo seus seios, e a outra mão segurava a cintura, e ela estática, assustada, que é que estava pra acontecer ali, o que é que ele ia fazer, parecia que ia me devorar, parecia que eu ia ser engulida por tudo aquilo, que eu ia sumir, ia sobrar mais nada de mim, ia ser só dele, e eu... eu que sempre fui tão eu, e eu que faço agora, e eu que sempre soube fazer o certo, agora aqui, não sabia fazer nada, e ele invadia com seus lábios, e invadia com as mãos, e ai, meu deus, invadia com aquela coisa, vinha invadindo assim, não podia ser, não podia mais conter, lágrimas desbruçavam de seus olhos, e aquela coisa que sentia, e o medo que crescia, não podia ser, nunca poderia,
- espera, espera! não, espera... só mais um pouco, não sai corendo, volta aqui... é sério tem um céu aí dentro, você precisa desse céu, merda, não vai embora, faltava só um pouco, merda, o que é que eu fiz de errado!