janeiro 05, 2011

cinco anos

era assim, sempre assim. a menininha ia quietinha no carro, ainda um pouco sonolenta, olhando pra tudo que passava rápido lá fora, a doce luz da manhã banhando tudo claro, tudo azul. a mãe também quieta, pensando em sabe-se-lá-o-quê, preocupada com o resultado do exame, ansiosa pelo verdicto médico, rezando pra que hoje dê tudo certo, sempre rezando, e esse Deus, essa manhã, essa luz, onde estão? e a irmã sonolenta e mal-humorada no banco de trás, acordada às pressas pois estavam sempre atrasadas, com os olhos embaçados olha o mundo sem realmente olhá-lo e querendo se deixar embalar pelo sono antes que chegasse aquelas filas, aquelas criancinhas incansáveis.
e a menininha, de repente, em meio à música que toca sem ninguém realmente ligar diz, com sua voz sonora e fina:
- olha lá, nana, olha lá, mãe, o parquinho.
a irmã vira a cabeça preguiçosamente e olha ali o gira-gira, o balanço coloridos de uma creche pública pintada toda de azul e branco. nana sorri para ela.
- é uma escola, sofí.
- uma escola, nana?
sofia sorri e tem os olhos azuis distantes, desses que olham além da estrada e conseguem chegar ao horizonte, desses que vivem em sonho permanente e nunca, ou quase nunca, perdem a esperança de esperar um dia lá chegar.
- um dia eu vou poder voltar pra escola?
talvez nos corações da mãe e da filha mais velha vinha uma vontade de chorar, uma tristeza sólida, piedade, tenha misericórdia, senhor, é só uma criancinha. e ir à escola, não existirá no mundo coisa mais rotineira, até sórdida, trivial, chata e por vezes deprimente? não existirá mais banal do que ir à escola... e nós aqui, a caminho do hospital. mariana queria lhe explicar o porquê disso tudo, mas não poderia, porque também não o sabia.
- vai, sofí, claro. quando seu cabelinho voltar a crescer.
e ela sorria. ela podia sorrir enquanto os outros tinham vontade de chorar. porque a possibilidade de tudo isso junto: de cabelo, de escola, de amiguinhos, de tudo isso era a certeza, o desejo, o horizonte e era fácil chegar ao horizonte só sorrindo assim.
- e aí você vai poder balançar os seus cachinhos, lembra?
e invadia no carro a lembrança viva e colorida, que vinha até com cheiro, cheiro de shampoo de tutti-frutti, tal cabeleira vasta de cachinhos dourados e a menininha balançando a cabeça e dizendo 'balança os cachinhos, balança os cachinhos'. e aqui agora, a menina carequinha, alguns fios apenas, ainda que cheirosos, com cheiro de sabonete, balançava os cabelos da mesma maneira, e com a mesma alegria, e com tal vigor como se os tivesse, como... se os tivesse.
- balança os cachinhos, balança os cachinhos.
você os tinha, sempre os teve. só agora eu os vejo, porque não importam os cachinhos realmente, não importam se existem ou não, contanto que existisse o sonho e existisse o desejo e existisse o sorriso de boca aberta, os dentinhos de leite, os dois da frente separados, e existisse amor. mesmo que fosse a caminho do hospital.
e isso acontecia toda vez, todo dia, que passavam por ali. e era todo dia porque todo dia era dia, uma nova vida, uma nova possibilidade de viver, e de chegar lá, e de sonhar. talvez você soubesse que não íamos chegar lá, mas é que lá já era cá pra você, contanto que estivesse feliz.

feliz aniversário, sofia.
onde quer que você esteja.

Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade, noite a girar
Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra
Vai pela serra
Vai pelo mar
Cantando pela serra do luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar, no ar
(o trenzinho do caipira)

tenha uma boa viagem.