janeiro 17, 2011

esconde-esconde, pega-pega

do lado dela o mulato dormia a sono solto. o cabelo sarará baixinho fazia volume feito travesseiro na calçada. ela dormia e acordava, e quando acordava e via para cima metade concreto metade céu azul nauseante, tentava dormir novamente. numa dessas acordadas, olhou para ele ali, dormindo como se rua fosse cama. engraçado, ele. a noite anterior chegara e nenhum dos dois tinha nada para comer. era melhor conversar, para falar mais alto que os roncos da barriga. e se por acaso ali sentados... alguém passasse com um pão, umas moedas. que nada. ficaram ali, sentados, beberem um restinho de pinga, riram fácil. ele já não tinha uns tantos dentes, talvez ela também não. mas sorriso não é para mostrar os dentes unidos e perfeitos: sorriso é para esquecer a lástima da vida. com ou sem dentes. o buraco na boca não atrapalha, ela acha, quando eles se beijavam, dava para se enroscar em cada canto. beijo nosso é mais gostoso. riram. porque também gargalhada é mais alta que o ronco, é para dispersar a vontade tímida de chorar. ficaram quietos, vendo a noite cair. logo vinha aquela brisa noturna, gelada, os ossos tiritando dentro do corpo frio, batendo uns nos outros, acho que faziam sinfonia. o corpo fazia sinfonia para fingir que ainda vivia. bem que podia ter uma musiquinha agora. cantaram um pouco. quando já tava tudo muito escuro, deitaram-se. ele a beijou, colocou a mão na barriga dela, a blusa rosa tão curta que usava. ele subiu em cima dela, ela o empurrou. de repente, tinha deixado porta aberta para a agonia entrar. quando entrava, se esbaldava. se esbaldava com a falta presente no corpo: faltava comida, faltava álcool, faltava amor. faltava felicidade. felicidade mais do que rir, felicidade completa. cama - felicidade completa. colchão lençol cobertor tudo. e até ventilador. não sabia porque assim, de repente, se entristecia. se entrestecia antes do amor, porque não fazia sentido amar. não havia vontade de amor, não havia sequer amor de verdade. tudo isso era para afastar. afastar fome doença morte e desconsolo. mas ela, ás vezes, não aguentava. vinha subindo pela garganta uma vontade de chorar. não devia chorar. o choro é o convite para a covardia. não podia ser covarde. segurava o choro, e tudo por dentro doía. o corpo chorava por dentro o que não podia por fora. vem cá, neguinha. ele enroscava-se nela, mexia no seu cabelo duro, beijava seu pescoço. vem cá, que tá de noite já. ela já pensou em ir embora, deixar ele. ele queria toda hora toda noite, e não entendia porque ela era triste. ela que não entendia como ele era alegre. mas não falavam do que sentiam um para o outro. seria covardia. a verdade é que estavam ali porque não tinham outra opção, ela pensava. e era por isso que também chorava. não teria outra opção se saísse andando, se procurasse? não sabia, faltava-lhe coragem. tinha medo do escuro, da solidão, da melancolia. pavor de ficar sozinha. vem cá, neguinha, vem cá, que é que há? ele acariciava sua barriga, ela gostava, fazia cócegas, fazia carinho. ele descia a mão devagarzinho, mexia na sua, ela sentia chegar, tesão. era bom assim, porque fazia esquecer. continua, para essa agonia ir embora. agonia, neguinha, lá vem voce falar de coisa que não sei. continua que ela tá indo embora. ele subia em cima dela, enrosca, desenrosca. sobe, desce. tira, põe. vai e vem. vai e vem. assim, neguinha, assim, foi embora? foi, foi, foi embora, goza fora. depois ele falou um pouco das estrelas. ele gostava de céu, gostava de estrela, de constelação. tinha aprendido várias e ensinava para sua neguinha como se fosse o bem mais precioso, tesouro secreto. se pudesse, estudaria as estrelas. mas isso é bobagem. a gente tem que viver, tem que ralar, e viver é isso: esconde-esconde, pega-pega. estrela era coisa de viado, gente fresca, que não vive. ele sentia todo dia vento na cara, corria, gostava de dizer a si mesmo: liberdade, era isso, liberdade, era o que tinha. fora preso umas duas vezes, então gostava do vento, da rua, gostava de estar fora. quem é preso, não esquece. e ele mal queria pensar naqueles dias, deixava-o cabreiro, até triste. e tristeza não vale, não pega. não sabia o que é que a neguinha se pegava com a tristeza, era melhor deixá-la bem longe. e como isso? perguntava ela, de olhos abertos. ué, não sei, nega, eu só tento viver e quando acaba a vida, eu durmo. então vamo dormir. dormiram, acordaram no meio da noite, treparam mais uma vez - que é pra não pensar, dormiram de novo. e agora o sol já ia quase a pino, céu azul, melhor que chuva. ou não, que esse calor era insuportável. já não sabia, tudo era ruim. e ele ali, ainda dormia. lembrou-se do que ele disse, a vida era isso, esconde-esconde, pega-pega. agora não sabia se escondia ou se pegava. inquieta, enroscou as pernas entre as dele, para ver se ele acordava, se queria trepar de novo. nada. levantou-se porque era hora de correr atrás da vida, ela ia rápido, esperava ninguém. no ouvido dele disse: hoje de noite aqui. foi e não olhou para trás.