setembro 17, 2009

a vó.

a vó era branca, olhos azuis, nariz grande e adunco. se não fosse rechonchuda, seria bem uma verdadeira italiana. a vó se esfarela, derrete, o suor corre na pele alva. é a cozinha que fumega, esfumaça e fica feito fuligem. a vó mexe na panela, de metal, grande, um nãoseioquê, que sobe vapor hedonista, faz os sentidos se atiçarem, cheiro de comida quente e caseira. a vó tem tanto calor que, no trono aristocrático da ascedência, bem se lembra da escrava negra. pouco se lembra, mas era filha pequena de filha de barão de café. lembra das sementes pequenas, que desprendiam cheiro volátil e escuro, quando torradas, e além das tantas, fazia-a correr até a cozinha quando o sabor procurava suas narinas. lembra da índia, cabelos compridos, era chamada assim, cuidava da menina, rugas infinitas, falava português errado e cantava canção de ninar em língua desconhecida, da sua terra há muito extinta. lembra da negra, na cozinha, o suor sempre lhe cobria, o avental sujo, olhava a negra, pensava, que bom ter negra aqui em casa, que bom ter negra que cozinha, cozinha bem, faz bem esta minha vida. a forturna se perdeu, os rios lavram as pepitas, a plantação de verde mudou-se para cinza. lembra da mãe, enfastiada, soturna, dizendo-lhe tristemente, seu avô é um canalha, seu avô é um canalha, perdeu tudo, os jogos, as mulheres, a cidade é uma desgraça. a mãe tentou lhe dizer que a cidade era uma desgraça, destituía nobres senhores com nobres motivos, honras tradiconalíssimas, a locomotiva usava de papel-moeda para queimar e fazer andar aquele monstro sem perna. mas estas histórias são tão antigas, que a vó mal se lembra, ela gosta da cidade, a televisão, ela gosta de ver as coisas, as cores, o mundo todo passa pela tevê. ela gosta de ar condicionado, e gosta de invecionices da cozinha, e gosta de cinema, e de celular, aquela coisinha pequena, veja só onde chegamos, meu neto, que coisa maluca, mas que linda que é! a vó se entristece, porque o jeito que limpa o suor da testa, lembra a negra, que não sabia o que era tevê, e não sabia o que era celular, e tinha uma vida sofrida, porque vivia sempre naquele cozinha. a vó sabe que vê o mundo pelas coisas que o homem inventa, mas o homem ainda não a tirou de dentro da cozinha. e a cozinha que é cavernosa, umas pedras, uma quentura, um monte de coisas em cima das outras, que é escuridão só, que só ela sabe. a vó chega, a panela quente, a panela grande, põe no centro da mesa. hoje é domingo, toda a família se junta, as crianças gritam, o seu velho dorme em cima da mesa. tem umas filhas, uns filhos, uns genros aceitáveis, umas cunhadas de que não gosta, uns netos barulhentos, mas todos lindos, todos talentosos, todos cheios de vida, aspirando futuro. duas filhas ainda moram com ela, o desemprego, uma coisa brava, uma coisa triste que só, uma quis fazer artes plásticas, a outra quis ser dona de empresa, a empresa faliu, o mercado as iludiu. mais triste é um outro filho, enlouqueceu, virou alcoolotra, diz coisas que a vó não entende, a vó briga com ele, e ele foge, e ela chora. e cuida dele, ele lhe parece ainda menino, não sabe onde errou, só sabe que sabe cozinhar. a família se senta, a vó grita, quer que provem, é feijoada, do jeitinho que a negra fazia na casa do seu vô. tem tudo do porco aí filha, eu sei que você tem essas coisas de não comer carne, mas precisa de carne, filha, carne é bom, sempre foi bom, come o feijão então, o feijão é bom também. a vó está ansiosa, provarão da sua comida, nem sente fome, nem quer comer, quer ver o que vão dizer. senta-se, serve-se e serve aos outros, sente-se adolescente, só a cozinha é que a faz sentir assim. olha para seu velho, o acorda, diz para provar. quer que seu velho vibre de alegria, como antes, como quando casou, e fez pela primeira vez aquela feijoada, lembra-se como ele aprovou, tinha vindo da europa, era holandes, não conhecia comida do brasil. lembra-se que ele lhe beijou, e a levou para cama, e fizeram amor com gosto de feijão, com gosto de amor. a vó já se esqueceu como é fazer amor, só quer que ele dê um sorriso de gosto, um sorriso de feijão, que é como fazer amor quando ja se é velha o bastante para isso. ele sorri meio a meio, pouco comenta, perdeu o gosto de falar, perdeu o gosto de viver, não sente mais sabor em comida alguma. e ela pergunta, o que foi, meu bem, não está bom, não está bom, gente? e a filharada concorda, a vegetariana comenta que os grãos estão macios, todo mundo diz que está bom, está bom, mãe, está bom, vó, é preciso dizer, para ver ela sorrir, toda a família sabe disso, é preciso dar mérito se não ela fecha a cara, e finda o domingo de família, e o mundo se acizenta. mas o vô murmura, entre os outros, e ela não o ouve, e diz, tão triste, o que é que é, o que é que é, meu bem, olha aqui, você só reclama do que faço, nada mais te agrada. as crianças também se emudeceram, e toda a família fica apreensiva, é o desmanche, o vômito, o mundo vai se acizentar. eu queria que você soubesse, seu velho, eu queria que você soubesse, eu sou branca, sou italiana, filha de barão, sou vó e mulher, sou mãe de família, não sou negra, não, não sou escrava não, não sou sua escrava não, de ninguém, não. não é mesmo, disse o pequeno, oito anos, não é escrava, vó, você é nossa vó, vamos só comer, vó, brigada, vó.