outubro 17, 2012

a vida é um nheco 2

quando eu era pequena, queria ser uma vaca. vaca pra sentar e só ruminar a comida, entendeu? ruminar e ruminar. a comida. a gente cresce e nem sabe. a vida é uma vaca. a gente rumina rumina tudo. e faz grunhido e faz gemido. e de resto, resta a bosta, que válá, meu amigo, não é a sua bosta da sua vida, vá com calma. é isso: comeu cagou simples assim. minha infância é de máquina de filme automática. não se sabia nunca comprar filme, inda mais pra automática. mas a gente pegava e tirava foto do zoologico. e quando eu era pequena, ainda, no zoologico me encantei por um orangotango. perdida da turma, fiquei vendo o orangotangão, laranja, agindo feito humano. pensava: que isso, que bicho, feito gente, e eu, seilá, que macaco, essa gente, que bicho. as girafas pescoçudas e toda aquela história que contavam. passou por ali um menino, todo tonto, dizendo, que há, apaixonada pelo orangotango. que há, apaixonada. é, não é. penso assim: a vida também foi uma vaca - mas não foi vadia, porque o desgraça é homem branco, e o homem não sabe, vadia, não sabe, vai morrer sem saber, que há. apaixonada, que há, talvez. me imagino namorando um orangotango. bem melhor do que os enamorados que caí na lábia, veja bem, ruminando-ruminando-ruminando-hum-hum. mas que hora, eu toda vaca enamorar orangotango. acho bem contado. tanto me fez. a gente vê fotografia antiga e pensa: é papel. depois, amanhã, não sei, não penso muito no amanhã, vou me desgraçando no hoje e ruminando a comida de anteontem. a vida é uma vaca, nem grande, nem gorda, nem malhada: falta pêlos, falta osso, falta carne. é vaca magra desde sempre. e o mato rareando rareando quanto mais a gente vai envelhecendo, os cabelos brancos, uns fios de náilon brancos esquecidos na careca. mas tá tudo certo: vai se ruminando se ruminando, como-se o papel das fotos antigas. e depois, não sei, não me pergunte. vão comer-se nuvens, essas coisas, coisas invisíveis, a vida vai deixar de ser vaca, vai ser, sei lá, pac man, se não fosse o amarelo. que a vida não pode ser amarela, que essa cor me dá náusea, que parece que tudo que é amarelo não se finda. o sol, me disseram, quando pequena: vai explodir, taí, me queimando por dentro das roupas todo meio-dia. e como se não bastasse ter que sempre ruminar tem de lamber as feridas que o sol deixa machucando. e tudo que eu queria, eu disse, me sentei no sopé da montanha onde tinha um punhado de mato - quando se é criança não pensa em providência, mas eu, veja lá, não penso muito nisso - botei o capim na boca e disse: sou uma vaca vou ficar por aqui a ruminar, licença.