outubro 10, 2012

unilateral

joguei as cinzas na bosta do remédio que eu tomei por causa de você. eu sei - não posso, assim, jogar a responsabilidade unilateralmente. mas agora é preciso: porque doeu. e quando doeu, doeu mais porque era vindo de você. doeu porque junto dessa dor física vinha-me a memória de você. porque estou agora interessada no efeito: no meu efeito, na minha dor. deixa eu sussurrar pra você a minha dor. queria eu que você pudesse sentir. mas é impossível, porque você não tem útero. porque você não vai mijar e tem a impressão que as paredes do seu útero estão se descolando. como se quisessem descer. como se meu próprio útero se recusasse a permanecer nesse corpo lacaio. como se não fosse mais possível ser mulher. e se não sou mulher, o que restou de mim, nada. restou essa tal dor atemporal. que não pôde ser medida ou relativizada: porque já não possuía humanidade. fui me rastejando ao banheiro para receber o golpe final, como vou me rastejando pra algum dia você me dar esse golpe também. eu já não acredito. vou serpenteando com o resto do corpo que ainda é meu. o bruto ficou nas suas mãos: mas, pena, você não se lembra. sou toda líquida agora, vou-me escorrendo pelas descidas e empaco nas subidas. mas, pena, você não sabe. você está enorme: engoliu toda a gordura. você está enorme, mas pena, você não percebe. seus passos estão pesados, seu mundo pesa na coluna. mas, pena, você se pergunta por quê. e talvez tenha os olhos tristes ou temerosos. mas não consegue ver o tamanho da sua barriga: dentro dela estamos nós. despedidas de nós mesmas, da nossa máxima irrisória, o de ser mulher, deixamos que você  carregasse nosso grosso, nosso todo, nosso útero descolado. sobrevivo fragmentada e te olho passar com meu corpo no seu. pediria de volta se não fosse doer demais. pediria de volta se não houvesse em toda essa história de sangue um último regojizo. que você anda curvado por nossa culpa, e ao menos, sente esse peso: não sabe, mas sente. te ver pesando do meu corpo no seu é uma alegria. como cancro, meu corpo no seu, e eu despedaçada. como cancro, meu corpo te corroendo de pouco em pouco, o mundo pesado demais para levar nas costas, nas pernas. há de ter alguma troca, nenhuma dor é unilateral.