janeiro 17, 2010

os olhos que deixei escapar de mim

então você tinha aqueles olhos. costumava pensar que viviam suas retinas num constante entardecer: a hora mais bonita do dia. entardeciam-se, preguiçosamente, amarelavam-se, avermelhavam-se, de todas as cores explodiam, para jamais escurecer. tudo recomeçava, dando-me vontade de beber tal líquido que era feito aquilo. e esses olhos me olhavam com tanto carinho! nunca mais me encontrei com olhos que repetissem sua análise minuciosa de mim mesma. ia percorrendo cada poro de pele, cada pigmento de cor avermelhada, que é a minha. via seus olhos se divertirem com meus fios de cabelo, parecia saber percorrer um a um, separá-los, mesmo que eu não conseguisse nem com a ajuda de uma escova. seus olhos tudo percustrariam. mas não eram policiais, ah não! transbordavam de amor incontido, iam pouco a pouco, delineando uma versão de mim que servia à você. concentrava-se no meu nariz, um pouco arrebitado, perpassavam carinhosamente pela minha orelha - um monte de pele retorcida de maneira confusa. olhavam muito a minha boca, uma linha fina de boca clara, cor-de-rosa, sem batom; parecia adentrar dentro da boca, observar a gengiva vermelha, os dentes não tão brancos que ainda conservo inteiros, a saliva transparente que se esparrama em ritmo compassado, iam os olhos garganta dentro, o muco, os músculos, iam corpo adentro, tudo percorriam, dentro e fora; mesmo com a boca fechada, eles viam - não viam? iam os olhos, de uma ternura e de uma malícia incompreensível aos meus - olhos um pouco apáticos, numa eterna noite sem estrelas - iam os olhos conhecer o caminho do meu corpo. subiam os seios com delicadeza, desciam os vales, se deliciavam nas costas curvadas, contavam as vértebras, corriam pelas pernas, pela pélvis, pela vagina também adentravam! ah, que lembrança destes olhos! fazia-me mais excitada só de olhar lá dentro do que quando queria sexo, e fechava os olhos - tão queridos! - para gozar. lá dentro, seus olhos viam tudo, e eu não tive vergonha, porque eram olhos de um amor brando, um amor com trajeito de eterno. até as unhas dos pés, pintadas de esmalte incolor, percorriam os olhos entardecidos, um pouco tristes com o fim do corpo. e os pêlos da pele, procurava a raiz, e dos cílios, e dos pêlos do nariz. uma pinta ou outra que tinha no corpo, achavam os olhos vorazes, uma mancha de nascença por muito tempo se concentravam. tu tinhas olhos de artista! ou eram olhos de namorado.
mas que olhos o quê, nunca soube retribuir tanto olhar - tanto amor! - para dar. dos seus olhos me despedi, e não deixei mais que me desnudasse com um olhar abusivo. preferi outros olhares, por aí, de dias ensolarados, olhares inconstantes, tempestuosos, que me descabelaram, e me fizeram morrer um pouco. com eles eu morri, com os seus só vivi. e só hoje percebo os olhos que deixei escapar de mim, a preferir olhares frios, distantes, azuis escuros, negros e pardos. e só hoje te digo, sem medo:
nunca mais encontrarei olhos que me olharão do jeito que os seus foram capazes, olhares de um amor pueril, intenso e machucado. e dos seus olhos, não quero mais saber - não, a vida já é dor sem voltar para trás - mas também, não importa: jamais irei me esquecer, destes olhos de entardecer.