janeiro 04, 2018

praça dom josé gaspar

no banco, o namorado alisa a ponta do cigarro de maconha e na outra mão acende continuamente a chama de um isqueiro transparente, a chama explode e apaga, sua namorada repentina larga-se em cima dele de forma tão lânguida que se faz mais melancólica que romântica. à vista, quatro jovens estão sentados, uma dupla de frente para outra, um come da marmitex de alumínio; uma dupla joga baralho, pela compenetração e pelo gesto displicente mas inseguro de descarte das cartas o jogo é buraco, um deles que segura a carta tem os cabelos longos crespos presos num rabo de cavalo e é maior e mais claro que os outros três; é uma cena admirável; atrás deles uma barraca de camping se ergue, lá vive um casal ou até mais gente, o cachorro deles late, carregam seus celulares puxando energia do poste de luz próximo, o quadro suave quase se desvanece com a aparição repentina da cavalaria da polícia militar, embora nem tanto. são três cavalos que levam seus cavaleiros de coletes amarelo fluorescente e farda, eles trotam calmamente por entre os meios da praça; nenhuma tragédia prevista desmorona: o namorado alisa ou guarda a maconha; os jogadores continuam silenciosos; o fio entre o poste e a barraca não é cortado. o som do latido do cachorro é interrompido pelo eco dos dezesseis cascos batendo no chão: por um minuto, nenhum ônibus atravessa a av. são luís e tudo que se ouve são os cascos no trote, como se este tempo fosse atravessado por um outro, aquele das carruagens e dos cavalos, dos homens bem vestidos, dos namoros nos salões ou flertes ali perto, no theatro municipal, das casas dos jogos onde o mesmo buraco, com as mesmas regras e a mesma compenetração, era jogado. os cavalos atravessam a praça, um é castanho escuro, do tipo comum, outro branco e da bunda gorda, dum branco sujo de poeira da cidade tornando-o quase acizentado, e o terceiro, castanho claro, tem as pernas anormalmente longas e torneadas, é magro e forte, e seu cavaleiro policial em consequência situa-se mais alto que os demais. o terceiro cavalo embora de primeira vista imponente era um tanto desengonçado, suas compridas pernas não harmonizavam com o corpo robusto de um cavalo e o rosto, imagino, também seria mais alongado que o normal, o nariz bem longe do rabo e o dorso bem longe dos cascos, a cada trote, o cavalo, bicho destinado a correria e guerra, tinha de pensar onde é que iam suas pernas, como é que gingava o corpo; mas tal característica, nem de longe, fazia-o de menor auto estima, pois olhando de cima para seu colega branco e gordo, ria satisfeito e seguia esguio. mais adiante outra barraca de camping e três homens deitados próximos riem divertindo-se, inúmeras pessoas usam o celular, um vento refresca o sol ardido do verão, as árvores chiam encostando-se com suas folhas verdes umas nas outras. na av. são luís, depois do Rembrandt, depois da portaria do Louvre (visitantes, favor identificar-se), passando por um gay vestido à moda (camiseta rosa e meias pretas até a canela), por uma mulher tanto escura quanto alta e masculina feito um segurança, com a mão no bolso da calça e um andar firme e em nada feminino (seja pela graça ou por seu caráter eminentemente vacilante), por três jovens vestidos à moda (piercing no septo, colar grande, black power) cantando parabéns pra você, um morador de rua esconde-se debaixo de um cobertor vermelho vivo. ao seu redor, quatro ou cinco pombas beslicam-o, sem ele sentir, ou comem dos restos do seu salgadinho aberto: nenhuma parte do homem ou da mulher está a vista, alguns moradores de rua, quando se escondem debaixo de seus cobertores encolhem de tal maneira que não podemos adivinhar gênero ou idade, nem se estão vivos ou mortos, se conseguem dormir estufados por um cobertor ou se estão demasiados doentes e por isso precisam do calor, se respiram. não sabemos sequer se não há ninguém ali embaixo, e o que é tal volume uniforme e se ele sente ou não as pombas que ciscam em cima e dos lados dele; o segurança da ótica da frente olha para o volume, não de maneira fixa e obstinada, mas com olhos tristes ou cheios de dúvida (pois o tom que os olhos assumem, se estamos tristes ou duvidosos, é muito parecido) que vão e voltam, tentando desgrudar do volume vermelho vinho da calçada mas sempre a ele retornando, como que também esperando que dali surja o ser vivo ou que ao menos alguém declare: morreu! sua gravata vermelha, parte do uniforme de segurança, voa com o vento. ele desvia os olhos do chão e olha nos meus disfarçando a ruga entre os olhos, recompondo o antigo olhar carregado de emoção para um neutro, imoral, sem julgamentos. talvez não estivesse a pensar no volume vinho, talvez estivesse a repassar em sua memória alguma dor, talvez estivesse tentando domar um pensamento obsessivo que teme tomar-lhe o corpo todo e o olhar de uma estranha desviasse-o de qualquer solução ou enigma, como quando cavamos um buraco demasiado fundo e a única forma de continuar é continuar cavando-o, pois já não temos meio de cobri-lo, e a resposta fosse o escuro e úmido do seu fundo, embora quando chegamos a esse ponto, seja esse sempre um fundo falso, sabemos que é possível cavar o buraco até o nunca, até as extremidades da terra, e o escuro não será suficiente, tendo que nos contentar, sem delongas, com aquele mistério, com aquela rachadura para todo o sempre. e ele voltou a superfície e me encarou com olhos nada suplíces, nada doces, nada rancorosos, nada indagativos, nada.