maio 31, 2018

rede

deitei-me na rede junto à janela, o dia estava azul e claro, convidativo. mas ali estava a rede à minha espera, e todas as plantas que eu coloquei em volta delas; tudo isso eu planejei. e escolhi as plantas que recendem, para então sentir, como agora, o cheiro delas perturbando suavemente as minhas narinas: o alecrim, o manjericão, talvez esse doce venha da lavanda, e o cheiro verde, da terra, próximo do perfume reconfortante das matas fechadas, das roças bem cultivadas, o úmido e as folhas apodrecidas, a sensação calma da natureza. tudo isso eu tentei recriar, dentro da minha casa, talvez, para que não fosse preciso sair. antes de me deitar na rede, eu tinha pensado em ir ao largo, sentar-me próxima de uma árvore, mas a quantidade de pessoas lá sempre me inibe; de maneira geral, eu não gosto de estar entre as pessoas, as desconhecidas. não as multidões, eu gosto delas, mas as pessoas sentadas, numa praia ou numa praça, que te olham com curiosidade e querem vir falar com você.
eu estou ansiosa por terminar a minha casa, e eu não sei bem porquê. deitada na rede, depois de cansar de ler, eu pensei que sou infeliz. mas essa infelicidade vem da mania irritante que eu tenho de me olhar sempre em terceira pessoa, de ver o meu próprio corpo deitado na rede e gostar de ver, mas não gostar de estar nele. da minha constante incerteza se eu deveria agora estar nessa rede ou lá fora ou ter arranjado um programa qualquer ou ter convidado alguém para me visitar ou me convidado a visitar a casa de alguém. eu sou infeliz porque não me sinto bem, quase nunca, com as minhas escolhas. tentei escrever, antes disso, e abri os textos e olhei e fiquei enojada. não tenho segurança alguma de saber se o que eu tô escrevendo é uma bobagem, para os outros, e nem para mim mesma. perco, com muita facilidade, a dimensão da minha vida, perco o fio que eu achei ter encontrado por permear.
vivo num estado de ansiedade constante e calma sobre a pessoa que eu quero ser. ao me deparar com meu trabalho real, me escondo, e as ideias fogem. qualquer comentário me desanima. e deve ser porque minhas expectativas são sempre muito altas.
minha imaginação, às vezes, não me serve de nada. só para me deixar triste.
fiquei na rede até que a luz acabasse e eu não pudesse ler direito as palavras do livro. o ritmo fácil e doce que Natalia Ginzburg escreve me dá vontade de escrever, porque é direto, sem rodeios. todo o tempo que eu li Meu nome é vermelho não tive vontade de escrever porque tudo é complexo e baseado numa admirável pesquisa histórica, coisa que não tenho aptidão, ou na verdade, tenho preguiça. apesar de ter lido rápido as 560 páginas do livro, eu ás vezes lia e relia uma frase com medo de perder alguma coisa. comecei a ler Natalia assim até me tocar que eu poderia tentar ser fluida. tenho esse costume de ler e reler os parágrafos e sempre acho que é sinal de Alzheimer, déficit de atenção, dislexia, depressão, ansiedade, o que seja. sempre.
a luz foi caindo aos poucos e eu admirei este estado que visito frequentemente, muito provavelmente mais do que uma pessoa produtiva visita. admirei, mas não no sentido de admirável; é um estado lamentável. a queda da luz me deixa melancólica. vezes sem fim eu chego cedo em casa do trabalho e fico no sofá fazendo qualquer coisa, como no celular, até que a luz do dia caia e a casa esteja mergulhada em sombra. tenho mania de deixar as luzes acesas sempre - mania não, mas algo muito interno à minha personalidade de distraída e desleixada - e as minhas contas de luz são exorbitantes, mas quando o dia me oferece sua luz, eu a aproveito até que não reste mais nada.
é extremamente triste. sempre me vejo num ambiente sem vida, escuro, indistinguível - a bagunça em cima do sofá e da mesa não importam mais - e as sombras dos objetos no crepúsculo criam formas pavorosas. eu sinto uma letargia tão potente que não consigo simplesmente me levantar e acender as luzes elétricas. tudo está quieto, com exceção da cidade que nunca se cala, não tem ninguém em casa e o dia não esta mais azul. eu gosto muito dos dias azuis. mas não é prazeroso, antes, há dor. como se as luzes finalmente terem caído eu possa enfrentar meus demônios: meu medo, meu temor diante da vida; meus fantasmas, meus desejos interrompidos, a infelicidade, minha insignificância diante do mundo, das pessoas que eu amo. finalmente, acessei meu estado interno. depois de um dia inteiro vigilante com a minha própria figura e as minhas ações, brigando com as vozes internas que me mandam ser útil e criativa ou se não conseguir, pelo menos lavar a louça. mas mesmo assim, me vejo: e é por isso que escrevo. aliás! como é gostoso escrever sem ter que revisar e tomar cuidado com as repetições, com a pontuação. desde que eu levei a sério esse negócio de escrever, o prazer foi escorrendo pouco a pouco para sobrar aquilo que os escritores sempre contam, quando falam de seus métodos: disciplina, o próprio método, o trabalho de cortar e acrescentar, de se fazer entender, de criar belas metáforas, palavras contraditórias em harmonia, fazer efervescer o centro do texto sem deixar aparente, etc, etc. tudo isso é trabalho e não há prazer. mesmo agora, preciso pensar, e ás vezes parar de escrever, mas é outra coisa. isso não tem finalidade. dizer isso agora encheu meus olhos de lágrimas tímidas: fazer algo sem finalidade é realmente prazeroso.
isto me lembrou o que eu queria escrever e não veio corpo, outro dia, estava andando na avenida angélica e pensei ter alguém nas minhas costas, virei-me assustada, e nada. como estava calma e talvez, até, contente - tinha passado uma hora no parque buenos aires, fazendo hora, ouvindo um casal de lésbicas se beijar nas minhas costas e lendo o meu livro e sentindo a grama penicar minhas pernas - pensei em escrever sobre a sensação quase constante que tenho de alguém me observando.
na rua, numa padaria, e principalmente em casa, no trabalho. em casa, eu me assusto e acho que são os fantasmas. olhando daqui, enquanto escrevia, a cozinha com a luz acesa a minha direita, em perspectiva, sempre parece esconder alguém.
eu não sei se são os fantasmas, mas me ocorrera falar que são os meus demônios. vezes sem fim que me assusto com minha própria sombra. pode ser que você me ache uma menina tímida e desmiolada, que tem medo de tudo e não tem coragem de encarar a vida - em parte, isso não deixa de ser verdade - mas pode ser também que eu esteja sempre alerta demais para poder ver os meus demônios.
porque, se são fantasmas, continuam sendo minhas sombras - Sofia, que eu lamento esquecer e lembro com tristeza, e que eu queria ter um altar, mas tenho vergonha o suficiente para não fazer isso, sua voz me chamando, sua alegria e o trágico curso da vida que a levou e logo Gabriel, o irmão vivo que nasceu depois e por conta da morte dela, que eu gostaria de ser mais presente e poder amar com todas as minhas forças, mas que algo, uma culpa, ou essa insistência em perguntar se ele existiria, se Sofia tivesse viva, se eu pudesse ter os dois, e mesmo assim, me culparia pela ausência em suas vidas, culpa que não é forte o bastante para me fazer voltar para Campinas, porque aqui em São Paulo, me fiz, fiz meu lar, fiz minhas escolhas, refiz eu mesma. talvez meu avô a quem chorei pouco em seu luto, meu avô paterno que morreu há tanto tempo, minha tia avó que me estimava muito, o irmão morto de minha mãe que não conheci, minha bisavó, que idem, chorei pouco e tive medo quando a vi amarrada na cama do asilo; de forma geral, eu fugi dos mortos e dos prestes a morrer - essa é uma revelação pessoal bastante importante. explica, finalmente, minha culpa mais intensa em relação à Sofia, quando ela estava já tão mal e eu insistia em voltar para São Paulo, e quando atendi tarde demais o telefonema da minha mãe porque resolvi ir ao cinema. fiz e com certeza farei coisas estúpidas como ir ao cinema em tempos dolorosos. quando descobri que Sofia tinha um tumor, e no sábado, fiz uns dreads idiotas. eu não consigo lidar com a dor, e nem ver a morte nos olhos do doente ou do idoso. eu até consigo, mas não quero, me afasto e não quero tocar neles. para me defender perante vossos ouvidos julgadores (aqui está uma reminiscência clara de Orhan Pamuk) eu gosto de lembrar deles alegres e com vida. no fim, coleciono poucos momentos, mas como sempre os revisito espero que tenham se cristalizados na minha memória para nunca mais perdê-los. os fantasmas, os mortos - então - são a passagem da vida, a corrida inexorável do tempo, minha memória falha. quando acho que os vejo, estou vendo como que relâmpagos da minha memória, ou da falta dele. de maneira geral, há tanta coisa para se fazer em vida! visitar todos os países, principalmente os que descrevem nos livros e nos filmes bonitos, conhecer as pessoas ilustres - não as famosas, mas as pessoas que reacenderão o fogo apagado em nosso peito, realizar um sonho, perseguir um objetivo, fazer o jantar e trabalhar com afinco, ser boa para os outros, não exigir tanto deles e saber lidar com a solidão e também manter viva a memória - dos mortos e também dos vivos distantes, e também as lembranças que me constituem para que eu não caia por aí de tão leve que está meu interior. pode-se perceber que viver me enfastia.
talvez por isso eu creia ser infeliz.
os fantasmas, ou alguém que está me observando, poderão também ser meus temores e principalmente meu orgulho, a ânsia de ser alguém para o mundo, de ser imortalizada, de ter alguém que se lembre de mim, que me leia, de ter espectadores a me olhar, de ser amada e amar. vezes sem fim num dia eu me decepciono porque não me amam como eu quero. e tantas vezes mais eu não amo outros como eles querem. quando isso acontece, eu sou birrenta, e choro, e ás vezes grito, e fico pensando: tudo está terminado, eu serei triste e só. dependo muito dos outros, de alguns outros e não quaisquer outros, e sei que preciso só tomar meu prumo, costurar este fio e seguir sozinha como são todas as pessoas.
bem, ás vezes não há sustância.
não é que eu me sinta leve, é o oposto - me sinto pesada e a esse peso devo às pessoas se cansarem de mim. tão pesada quanto uma pedra estagnada. para me mover, tudo parece difícil, trabalhoso, hostil. 
talvez essas sombras que me perseguem, seja minha leveza, meu próprio espírito escondendo-se de mim. 
gostaria de voltar a falar do cair do dia. toda essa história dos fantasmas me surgiu um dia que não tive tempo de escrever e por isso, agora, não sei dizer ao certo o que eu queria. hoje, verdadeiramente, penso que são meus próprios olhos me olhando, como sempre. 
o cair do dia é muito triste e lúgubre e nada consigo fazer, mas é como se eu me resguardasse. minhas energias só ativam pela cor total do céu, ou seu azul ou seu preto. as nuvens cinzas me desanimam e a chuva, quando não é intensa, me irrita. ainda assim, fico feliz ao constatar isso. alguma relação profunda com o tempo, o tempo das coisas e a maneira da natureza, eu guardo. o fim e o começo da luz é o tempo do resguardo. quando animais diurnos se escondem e os notívagos saem, quando as plantas descansam do seu incansável papel de processar a luz do sol. um respiro.
por quê o respiro do mundo provoca em mim melancolia?
talvez seja o contrário, e esteja desalinhada. mas estar desalinhada é a única forma de existência que eu conheço. o crepúsculo vadio provoca em mim a rara vontade de ser eu mesma. de escrever sem ser para os outros, de fumar três cigarros em meia hora. de não me observar atentamente. 
meu medo, no final de tudo, é realizar tudo e não ser feliz. eu não sei porquê direito, racionalmente nem acredito em felicidade. mas estar em constante desacordo e não conseguir fazer o que eu deveria, o que eu deveria? pensar na minha morte é cada vez mais angustiante - talvez essas sombras seja ela mesma me espreitando, então - o fato de que estou me aproximando lentamente do dia que expirarei. quando era mais nova, gostava de imaginar a forma que eu morreria, quando eu comecei a fumar fazia piadas sobre morrer cedo - ainda faço, mas logo depois sinto um peso dentro de mim. quanto mais os anos passam, mais próxima ela está, e mais difícil é falar dela com aquela leveza. porque falar da morte é falar da vida, e a vida, muitas vezes, não é um campo aberto da imensas e coloridas oportunidades, mas uma trilha cada vez mais fechada, restrita. ainda me resta o alto para olhar e lá em cima, um céu. o céu é o último refúgio dos sonhadores, das pessoas insatisfeitas e infelizes, dos loucos e dos mendigos, porque não há limites nele. eu gostaria de morar no céu, onde tudo se abre em infinitas dobras de tempo e espaço, onde tudo é distante e as preocupações se dissipam feito fumaça. 
mas no céu não poderia realizar. e meu egoísmo, meu orgulho, meu ego - meus diabinhos - dançam embaixo dos meus pés pedindo atenção.
tive vontade de terminar com Deus me ajude. mas eu não acredito em Deus.