outubro 18, 2009

um eterno domingo

minha cidade é um eterno domingo. anda-se por tudo, e tudo não é tanto, e vê-se a mesma coisa. as casas todas pequeninas, todas quase iguais, janelas quebradas de bolas jogadas e tempos idos, portas rangendo, cortinas floridas, tinta desfarelando, infiltração nas paredes. dentro, o cheiro é de comida, é de café, é de gente, de lavanda. na porta, ficam as velhinhas, em suas cadeiras de balanço, a costurar, a costurar, surdas para o mundo. do lado delas, dorme um cão velho. um pouco mais pra lá, tem umas cabras. em casa a gente tem cabra, e troca o leite delas pelo da vaca do vizinho da frente. eu prefiro leite de vaca, mas a gente não tem tanto, e toda gente de casa acaba preferindo o que não tem. minha mãe bate o leite, sai margarina, sai queijo branco. tem feijão todo dia. tem horta, e a gente troca o que não dá na terrinha de casa. ás vezes, também, a gente compra, no armazém, uns leite condensados, coisa assim, coisa de lata, minha mãe fica toda espantada. tenho quinze anos e mal vejo a cor do dinheiro. a gente fica estirado na rua de terra, deixando o sol bater. o sol tem sempre. quando tem chuva, a gente sai também, que é pra correr e sentir os pingos d'água. e depois todo mundo recebe bronca, e tem que tomar banho quente, de caneca. eu gosto de banho quente, mas quase sempre tá quente demais para isso. a gente joga bola, as meninas pintam as unhas. junto, a gente vai no cinema. fico todo arrepiado de ir no cinema. aquela tela, coisa grande, aqueles filmes, tanta coisa no mundo, e a gente aqui, a gente aqui. minha mãe odeia o cinema. diz que desde que chegou pra cá, a gente pensa mais em beteira, pensa em sair, reclama demais, fala demais. minha mãe não gosta de falar. meu pai gosta assim. a gente não vê a hora de ficar mais velho. a gente vê, eles saem a noite, e bebem a noite toda. de dia, tá tudo desenhado na rua de terra, tem garrafa quebrada, sempre tem pai bravo, e os filhos dormindo, e os filhos dormindo. e eles odeiam a nossa turma, e a gente odeia eles, se bem que eu gosto da maria lúcia, menina bonita, dizem que dá pra todo mundo. só não dá pra pivete. já fumei cigarro. a gente tava à noite, noite fresca, lua alta, nada pra fazer, chegou o jão, diz que roubou do irmão. juntou toda a mulecada, a bola de lado, o cigarro de boca em boca, maior felicidade. aquele dia a gente teve té alucinação. meu pai disse que cigarro não dá nada, mas a gente viu coisa no céu. viu disco voador. aqui, todo mundo vê disco voador. todo mundo vai fazer uma fézinha pra mega-sena. todo mundo vai pra igreja, acende vela, ajoelha, e eu ouço as velhinhas querendo ganhar na mega-sena, e também pra quem tem doença, melhorar. tem um hospital e uma farmácia, que é do prefeito da cidade. que também é dono de umas terras de milho aqui do lado. toda a gente sempre vota nele, porque se não ele fecha o hospital, ele diz que sim, e as pessoas acreditam, porque todo mundo aqui odeia as doenças estranhas. quando morre gente, a cidade inteira entra de luto. passa o caixão em todas as ruas, e vai indo atrás toda a gente. as mulheres, os olhos virados, as mãos pro céu, choramigando um choro que parece uma canção. e os homens cabisbaixos e quietos, pela primeira vez, quietos. e depois vem a gente, meio entediado, ás vezes triste de verdade, as meninas chorandinho, a gente mostrando que é forte. é que a morte assusta mesmo. a gente já viu a morte também. no dia que a maria helena morreu, a gente viu um vulto entrado pela janela. tinha foice e tudo. se um dia eu vê a morte, se um dia vier pra mim com seus olhos grandes e sua boca cheia de dentes, eu juro que saio correndo. eu quero ver o que o cinema mostra, antes de morrer. quero ir pruma cidade que os dias sejam sábados, ou até segundas-feiras, mas não esse eterno domingo, passando, passando, passando.