outubro 13, 2009

a menina que não sabia cantar.

a menina pôs-se à frente do público. o público, heterogêneo e entusiasmado, olhava com interesse. alguns cochichavam indiferentes, outros não tiravam os olhos da protagonista, enchendo-se de pretensões e expectativas enfadonhas. a menina pousou seus olhos em um lugar, lá estava o homem que abria seu corpo e sua alma. os olhos, quase sempre calmos, dele não tiravam da imagem de sua amada. sequer imaginava que a sua volta existia um público que também queria extrair o mel dela. seu coração batia forte, rápido, talvez pensasse estar mais nervoso que a candidata à reprovação. não estava, não.
se dava o primeiro tom: o piano distante farfalhava as notas, o violoncelo dedilhado com vigor, a flauta em consoante harmonia. o plano de fundo montado, cenário muito do aconchegante. logo, todos se embalavam pelas notas, e esperavam pela voz. a voz demorava a vir.
os músicos, apreensivos, olhavam-se. já era hora da menina abrir sua garganta. já era hora de ela escancarar a alma. a menina, como perdida na compostura, olhava o chão, e sentia nó na garganta, vontade de chorar. todo o corpo era líquido: o suor por tudo escorria, e parecia que as pernas não tinham mínima consistência. os músicos improvisam.
os mais bem entendidos de música, ali, enchiam a platéia de caretas indesejáveis. os outros, que não percebiam a volta completa da introdução, percebiam pelo olhar teatral da menina. ensaiava uma tragicomédia que só podia fazer-se eles rir da protagonista. o único que nada percebia era o noivo, afetivo. há quem diria que ele só queria incentivá-la, mas enganam-se. os caminhos neurológicos de audição e percepção foram todos bloqueados: tudo fora contaminado pelo amor. os sentidos, para ela, em real, inexistiam, tendo apenas no corpo dele, lugar para admirá-la.
decorrida a segunda introdução, a menina, ao ver o rosto aberto em sorriso de seu noivo, como que ainda ouvindo as notas aconchegantes, começou a cantar.
e da sua boca aberta em ó, e os cabelos esparsos, e o jeito das mãos, e tudo fora desastre completo: o primeiro a era já uma catastrófe.
e as ondas de som que irregularmente chegavam sem cessar aos ouvintes, faziam irritar seus ouvidos - que se dizem musicias. eram ondas esparsas, abstratas, de ruído. é como avenida de capital, as buzinas, e o motor que arranca, e que pára, e os zuns da cidade que empobrecem o espírito.
era áspera, para melhor definir. exigiam que as vozes fossem doce, lisas, sedosas, som que vem do mar, da tranquilidade.
os músicos se concentravam para não rir. um mais libertário, pensava que fosse muito bem se acompanhasse com aquela voz baixo, guitarra e bateria. jamais piano, violencelo e flauta. que o clássico só aceita ouvinte puro e refinado, e abomina toda forma de revolução.
a catástrofe era completa pelo filme que se seguia: se filmassem a platéia, haveria descontentamento e irritação, haveria gente levantando-se, haveria farfalhos e cochichos maldosos, e até mãos que cobriam orelhas mesquinhas.
mas o amado, em seu estupor, nada disso achava. a voz da sua menina era ainda o mel que esperavam. a voz dela, era o canto que o fazia embebedar e apaixonar-se. a voz era lhe perfeita harmonia, e acalmava os ânimos, e lhe dava engrandecimento. orgulhava-se. olhava-a com extrema admiração, acompanhava os movimentos desajeitados do corpo - que tampouco ajudava na perfomance - como se deus estivesse nela própria.
e quando as luzes se acenderam, ouviram-se Graças a Deus, e poucas palmas ressentidas ressoaram. o amado, sorrindo ainda desmedido, batia forte as palmas, e sequer havia percebido a platéia amarga que o desaprovava.
beijou-a com fevor, lovou-a, e a chamou de passarinha.
ela, saiu envergonhada, a cabeça baixa, as mãos pendentes. as pessoas não se dignificavam nem a olhá-la, para não expor seu descontentamento ou ainda, ouvir justificativas daquela voz tão áspera e soturna, que até para falar, devia fazer sair o som das palavras de outra maneira.
disse ao homem para irem embora, e ele foi embebido, disse para saírem e fazerem amor, e pediu-lhe para que repetisse como a amava e como era linda e cantava bem.
e ele repetiu toda noite, com falas de teor poético, vassalo da dona, e quis ouvir os gemidos, que lhe eram doces e tenros, e quis com ela ficar e fazê-la sorrir.

e ela sorria, pois amava com amor, sem saber por que tanto merecia.