dezembro 29, 2008

a cigana

a cigana dissera que, por seu cabelo ser muito avolumado e enrolado, atraía e guardava muita energia negativa. explicara rapidamente que tudo que fazia parte de nós captava energia dos lugares que frequentávamos. diante da decepção da moça, ela deu um sorriso de desculpas e disse que a cor da sua pele era ótima para espantá-las. mas o cabelo, o cabelo, não adiantava.
ela pensara que ciganas eram pessoas espalhafatosas, vestidas de cores fortes, com argolas douradas grossas penduradas nas orelhas grandes e cabelos tão mais volumosos quanto os dela. achava-as umas charlatãs, mas resolvera, sabe-se lá porquê, visitar a dita cuja. mas aquela, uma amiga a recomendara, era diferente. ela vestia uma bata simples de mangas compridas que ia até os pés. a pele era branca e os olhos de um castanho infantil. os cabelos, obviamente, eram lisos e colados ao rosto fino. ainda assim, tinham um corte curto chanel reto e sem graça. não tinha nem furo na orelha, assombrara-se a moça. ela mandou-a sentar no chão, e apoiar as costas em almofadas de cores zen. talvez fosse da linha zen-budista. ou espírita. ela não sabia muito bem a diferença. o lugar tinha cheiro de lavanda, e não de incenso estranho, e isso até a agradou, impedindo-a de xingar a tal cigana.
- qual a solução?
é cortar o cabelo, bem curto. é cortar o cabelo, bem curto. aquilo ressou distante dos seus ouvidos, como se fosse algo de possibilidade remotíssima. em seguida disso, ela começou mais a parecer-se uma cigana cinematográfica. preveu pequenos desastreses (que já aconteciam) devido à energia acumulada. e disse que seguisse seu precioso conselho, sua vida daria uma guinada. a moça preferia a zen-budista que essa profeta mandona.
- que guinada?
você vai conhecer um moço bonito. um daqueles que te pegam pela mão e levam para passear na rua, e a rua continua sendo feia, mas você a vê tão mais bonita. são esses caras, esses mágicos, ela comentou, esses mágicos que fazem essa vida valer. deu um sorriso sincero, pela primeira vez, e ela pode observar como os dentes eram amarelos e feios. parece que seus dentes também armazenam bastante energia negativa, senhora.
é claro que ela não seguiria nenhum conselho; mas diversos desastres tomaram conta de seus dias adiantes. esqueçera de desligar a máquina de lavar roupa, o bilhete único deu problema que lhe rendeu disperdício de duas horas do dia, e muitos reais a mais na conta de água. o celular caiu na privada e perdeu a sessão do filme que ela tanto queria ver. tropeçara e ralara os joelhos, imaginando quanta energia negativa devia estar acumulada com aquele sangue seco, mais parecido com ferida de criança. a pipoca estava de gosto péssimo, e o café tão forte que quase engasgou e cuspiu na cara do garçom que vinha de olho no último mês. ela não gostava realmente de café. olhou seu cabelo, com crescente desconfiança e repúdio, e foi aí que deixou cair o espelho de mão. o espelho rachou. oh droga, sete anos de azar, e eu já tenho tanto!
diante de tantas perspectivas, já não tinha carinho pela juba negra que se entrelaçava, de maneira selvagem, acima do couro cabeludo.
- corta aí. corta curto. só não me faz um corte sem graça. eu sempre fui moça marcante.
ouviu as tesouradas rápidas, de olho fechado. estava com medo de olhar o grande espelho do salão e este rachar. estava farta de tanto azar. enquanto ouvia zip! zap! imaginava se agora sua vida mudaria de direção, como a maldita cigana falara.
na esquina da sua casa, morava um moço que usava óculos quadrados, pois tinha miopia de sete e meio graus, e camisas listradas com botões cor-de-bege. o moço, em suas pobres horas vagas, passava pelas ruas procurando por nucas, gostava do desenho das nucas, gostava de como desciam até os ombros, os ombros bem feitos de mulheres pequenas, gostava tanto de nucas, e por isso, gostava tanto quando elas podiam estar à mostra. queria desesperadamente uma nuca só para ele.
a moça olhou-se e até que gostou do cabelo. passou as mãos por eles e sorriu, de leve. levantou-se e seguiu, sem um tropeço qualquer, para a vida que se garantia à frente.

depois de dois anos, mandou rosas à cigana. rosas brancas.