junho 20, 2012

lembro de como meus pés afundavam na lama

lembro de como meus pés afundavam na lama, na lama daquele jardim, aquela roça, poça. roçava em mim devagar e quase sem tocar e eu bicho solto corría corría. bom dia bom dia, você dizia. e meus pés afundados: minha saia levantada, minhas canelas parrudas, tenho uma pinta aí, veja bem. ou de tanta terra que aí não saiu. esfregou, esfregou e não saiu. deixa eu esfregar, meu bem, com jeito, sabão de pedra e carinho. olhei esparsa, desse jeito: esparsa, como se eu quisesse, ou se pudesse, me espalhar por todo o terreno, me debruçar, me esparramar. se eu pudesse ser terra lavrada: você poderia com seus pés em mim pisar. se eu fosse terra, então, nasceria para receber teus e os deles todos pés desde que o sol se punha ao sol se deitar e ser lar de tudo que há para ser lar: mesmo se lar fosse de cimento em cima de concreto em cima de pedra em cima de pé. pé, barriga, lesma. você derrubava a água quente em mim, devagar. eu mantinha a cabeça curvada: a nuca torcida, meu cabelo todo cobria qualquer resquício de. tudo eu quis cobrir de você, tudo que você pudesse de fato roubar, todo o resto, era a água que escorregava, quente, por todo o corpo dolorido. dolorido desse tal frio: era frio, me lembro. cobri de você meus olhos cheios de temor. corri, corri. de verde a cinza e esse verde acizentado, no mesmo. naquela mesma terra onde me afundei tentei voar. de tão rápido flutuar para longe daqui, daqui. minhas unhas cheias de terra, minhas unhas todas carcomidas. você as pegou com aquele seu sorriso: um quê de sinistro, um dente preto no meio dos outros. você me olhou quase como se reprovasse para depois meus dedos beijar, você e seus gestos fúnebres que me. que me faziam. meus dedos de terra, você os beijava, como se lambesse, os lambia, como se os comesse. os devolveu limpos: os devolveu brancos. lembro de como meus pés afundavam na lama, não podia saber o que era lama o que era eu. éramos da cor da terra, éramos fundidos à ela, todos dela, nela. mas seus dentes brancos enbranquiçavam tudo: enbranquiçou a cor de terra que tinha meus dedos, enbranquiçava, cobiçava o branco dos meus olhos, o branco dos meus. me escondia, e na rede, fingia que dormia, embalava, você cantava, me ninava, sua voz, era doce: me dizia, dorme, menina, dorme, menina, dorme, menina. você dizia que me protegia. e nessa rede eu me entrelaçava, menina, nessa rede eu me diluia, menina, lavrava essa terra de que sou feita, pronta para semear ser de raiz plantar batata beterraba e mandioca. todo o resto, o mundo, que amálgama. todo o resto o mundo, me encarava. e eu olhava diluída, eu olhava pinga-gotas, chuva fina. desse campo todo. uma multidão devastadora. devassidão, diziam: perfume barato, pérolas falsas, fita roxa, fita vermelha. longe, menina, atenta, longe, corre, menina, corre, menina, corre, menina. lá estará seu lugar. volta seu olhar: abaixa teu profundo, volta para lá. volta corre louca busca. o quê? e meus pés e meus pés afundados até as canelas parrudas (a pinta que não saía, era sinal de herança, era sinal de desgrança) nessa lama, toda a lama: toda minha lama que eu criei. você disse, boba, bobinha, jogou água em todo o terreno fez da terra boa terra lavada não sabe ao menos escrever confundia lavrada com lavada confundia tudo boba menina boba se esconde ao menos pára vem comigo eu te protejo. você disse, olhos nos olhos, romântico, a viola tocava ao fundo dirindondondirin: eu te protejo. eu e meus olhos e meu branco dos olhos (fraqueza minha eu toda feita de terra escura) eu e meus olhos marejados, minha culpa desluta. desistia. me lembro como eu desistia. me lembro como desistia: uma coisa no peito, uma coisa amarga. isto, isto, isto, isto. bom dia, bom dia, bom dia. eu ouvirei, bom dia bom dia bom dia, deixa-me esfregar sua pinta, bom dia, deixa-me te amar com cuidado, dentro do escuro, deixa-me, seu sussurro pasmo, nada diz nada. e seus lábios pegajosos: eu me. eu me. eu me porque não pude conhecer: o resto e o tudo o que eu me lembro: me lembro dos meus pés afundados na lama. me lembro, a lama, toda a lama, aguaceira danada, a lama já não lama. a cama firme na terra seca, chama. a terra boa e lavrada, bem lavrada, lavro todo os dias, lavro com amor, tenho amor ainda tenho amor costumava sintir aqui: amor uma coisa amarga. uma coisa amarga que vem me fazendo. inchando inchando inchando. como incha o inhame cozinhando. cozinha fumaça esquenta. o seu fogo que já não me. não me. lá longe louco se desenha: qualquer, se desenha, e seu lábio pegajoso: eu ainda quis, choro, eu ainda quis, o branco que revira lúcido: mas insana atento. silêncio, que atento. silêncio, que já não me lembro: quero me lembrar novamente. já não lavro, lavo. já não importa: toda a água para toda a terra, toda a água para lama. se lembro se me vale, amor essa coisa amarga e egoísta. se toda lama se na lama nasci vivo. não morro em seca terra lavrada, esparramada por você, bem lavrada, bem semeada, daqui saem meus frutos: minhas lesminhas formiguinhas minhoquinhas contorcendo-se todas. toda terra tem sua raiz louca: e lá corre subterrânea toda a nojeira escondida, minhas unhas, meu bem, cor de terra, enterradas, como a terra, adoecida, grito e te acuso: não me proteja. não me proteja. não me proteja. me poupe de me esfregar me poupe de seu. sou terra, sou toda, lavada em lama, esparramada, sou tudo: sobre mim crescem cidades crescem campos infindos crescem de tudo, só você não cresce, só você empata, seca. lembro de como meus pés: vou deixar que meus pés se afundem, se afundem, se afundem, se afundem, vou afundar-me toda, afundo, afundo, fundo, mundo, toda e tudo.