maio 12, 2013

a avó e o menino

tinha medo do barulho que o skate fazia. as rodas agressivas sobre o asfalto. ela que é só pedestre e nada mais, e andava com seu passo miúdo, no máximo fazia ecoar o som das chinelas. vru. era quase como carro, mas na sua mesma via, rápido e certeiro. se encolhia tímida. era uma velhinha frágil, que levava uma vida melancólica, da padaria para casa, por vezes à praça e não tinha amigos. nesses tempos moderados, devagar, de poucas paixão, o único que lhe arrebatou seu coração era o neto. um menino robusto, que ela descrevia com uns traços fortes, coisa vinda não da sua família, e que a assustavam ao mesmo tempo que lhe criou um amor incomum pela criatura. como se apaixonar fosse só o que era porque havia algo ali que não lhe era familiar. e lembrava o som das rodinhas agressivas, do freio ao parar, ali na sua casa. mas entrava manso e tímido, falava com o canário e ela resolvia botar água nas samambaias. a parede de tijolos e o chão de caquinhos e as samambaias verdes vivas. a casa vivia na temperatura morna e ela lhe tomava as mãos frias, fazia café fraco. tomavam um olhando no olho do outro, falando baixo e pouco. não gosto disso aí que você anda. é mais fácil, ele dizia, segurando o boné com as mãos, menos por respeito mais para que ela pudesse percusionar seu rosto sem interferência de sombras. deite aqui. deitavam e ouviam a velho rádio do avô morto. ele demorou muito tempo para se decidir ir. se a cidade não lhe agradava, os pais e as manias nervosas, a maconha no sopé do morro com os meninos da sua idade, e aquela paixão virtual pulsante, uma menina não muito bonita mas que tinha grandes sonhos. demorou tempo por causa da velha, queria esperar que ela morresse, por mais que doesse esse desejo. mas ela não morria. vivia até, e vivia por ele. e mesmo assim, não lhe contava quase nada da sua vida. o pai guardava rancores, vez ou outra citava os desarranjos da velha que um dia fora mulher. ela mostrava algumas fotos. mulher bonita, isso sim. uma vez se viu pensando na avó, a noite alta entrava pelo quarto, o gozo saiu estúpido e sem culpa. deitou-se no colo dela, as mãos procuravam os cabelos, ouviam Chopin. ia em muitos concertos, quando nova. e parava por aí. um dia quis lhe mostrar a música que ouvia, música pesada, a avó, para dizer que não gostava, foi fazer mais café. é preciso dissimular muita coisa para te amar. mas eu continuo. mas ele se fazia dissimulado, também. era como partilhar de diversos mundos, ser outros para ser amado. quando disse que ia, ia embora com uma menina, e previu as primeiras lágrimas, contidas como seu falar já tinha o discurso na ponta da língua. vó, eu só sei amar porque você me amou. 





estava no rio de janeiro quando recebeu a notícia. sabia antes do telefone solene tocar. a marcha fúnebre em ring tone. sabia porque tinha visto ela de noite. fora dormir, irritado, em separado da menina em questão. quando sabia-se irritado, recolhia-se, para assim evitar conflitos. sempre o fora assim. e ela lhe apareceu, não calma e sorrateira como pensou que seria, mas um pouco desesperada. a solidão lhe amargara. estava mais velha, mais feia, mostrou um pouco dos dentes amarelos. a sua avó, voltou a fumar, voltou a beber, se foi. chorou consternado. se sentia culpado. a mãe ralhou para ele voltar. que adiantaria ver a velha estendida no caixão, fria, os olhos estagnados, não mais ansiosos para procurar os ruídos do seu rosto. e reclamar de taquicardia quando ouvia o som do seu skate estacionando. nada. disse que choraria sozinho. abandonou a menina, que mal fizera questão. foi andar na praia, ver as luzes da encosta do morro. cidade bonita, serve para nada. a mágoa não se desfazia. e então, ela voltou. pousou do seu lado. pegou nas suas mãos, não estavam frias, ainda bem. não era para você estar no seu enterro, a olhar os parentes? que adianta. a avó o seguiu. e ele seguiu a avó. seguiu do mesmo jeito que ela, sem entender direito. você pode ir comigo para o piauí? a menina disse, um dia, acordando cansada de repente das luzes do rio. se minha vó quiser. ela o olhou e não compreendeu. filha de militar, aversa à todo tipo de cristianismo, não entendeu. isso não é Cristo, Eulália. meu nome é Daniela. me dá uns dias. e a avó continuou lá, a observar ele fazer o café, a observar ele bebericar o café, mas ele não conseguia lhe falar como é que ia se mudar de novo. escuta, Daniela. minha avó anda muito cansada, não consegue andar. tem as pernas fracas já, o passo miúdo. não lhe serve até a padaria? ela foi embora desprezando-o. era dois anos mais velha e chamou de imaturo. maluco, nunca. cristão estúpido. 




ficou ele e a avó, naquele apartamento que não era nenhum deles. pouco a pouco, trocou os postais e as pinturas, colocou as samambaias. comprou um canário clandestino, cor de abóbora. colocou na sacada, aguava as plantas, aguava o canário. entregava jornais. voltava cedo, com alguns exemplares e lia em voz alta para a avó. uma prática que construíram nos tempos póstumos. tentou escrever alguns artigos, lia para a avó. ela sorria e aprovava. colocava Chopin e escrevia sobre a cidade. na redação, lhe disseram que aquilo não parecia o rio. tinha certeza que moravam na mesma cidade? as árvores frondosas que abrigam os moleques doidos por maconha não eram muito cara de cartão postal, nem mesmo tinha fundo crítico algum. nunca publicou nada. deu de ombros. mudou de emprego, fazia café todos os dias, e alguns bolos também. aposentou de vez o skate, vendeu-o e comprou um sofá acolchoado. deitava-se com as pernas para cima e a avó lhe fazia os costumeiros cafunés. foi encontrado sozinho. sozinho para a padaria, sozinho para ver o mar se arrebentar na noite. a rememorar a noite que ela lhe apareceu: ali estava para que ele não sentisse culpa a vida toda. a vida se fez grata e grande para os dois. foi boa, mas foi pequena. me conta de seu passado. ela balançou a cabeça, os ralos cabelos soltos e grisalhos balançavam docemente quando o fazia. não importa, nada mais importa.