setembro 26, 2014

não quis partir com você

ela tinha dito: vamos embora daqui. em pé, arrumando papéis que se desorganizavam pelo sopro do vento, etiquetando colorido para o outro e pregando sóis amarelos vez em quando. parecia estúpido demais. as crianças apareciam com os dedos na boca na porta, ora choramingando, ora sorrisos banguelas. ela abaixou-se, a coluna parecer se torcer, uma pontada na vértebra mais próxima do cóccix, lembrou da notícia do dia, atriz modelo paraplégica, paraolimpíadas, medalhas de ouro pruma loura descolorida. pegou nas mãos pequenas e sujas, deu um beijo, espiou, a dor latejava. nunca mais vou levantar. a criança correu pé-ante-pé devagar e desengonçada como um potro, o cabelo na altura dos ombros e o corpo arredondado a fez esquecer se era menino ou menina. como chegaria em casa, duas horas depois e quinze minutos dum cigarro derradeiro, e ela teria aprontado as malas, quiçá partiu. continuou agachada, sem olhar a procurar quem quer que a ajudasse a sair daquela posição sem perder o movimento dos quatro membros. o cachorro babão veio rápido e a derrubou  no chão, farejando seu rosto úmido. ouviu o revoar das gargalhadas das crianças soltas, depois mandaram-lhes calar a boca, pegaram o babão pelo colo e o prenderam bem firme lá no fundo, ofereceram duas mãos a levantar. a coluna doía, ela reclamou. é hora de mandar o babão ir embora, qualquer dia ele come uma criança. sempre essa história do maldito cachorro, ela disse já volto e foi fumar cigarro exausta, já sem carinho nenhum pela luta do babão, em que duas monitoras dentro de seus aventais azuis escuros e caras retraídas faziam campanhas há mais de um ano para largar ou ficar com o cão. as duas rosnavam, pintavam plaquinhas, uma mandou as crianças pintarem o babão, outra chamou a vigilância sanitária. quando contava essa história em pormenores à ela, ela fazia cara de tédio, tinha nenhum interesse na história encardida do cachorro. agora que ela tinha partido, se libertado, não nutria nenhuma compaixão pela política do cachorro. teve vontade repentina de beber muito. essa cidade tinha alguma atração, ela insistia. apagou o cigarro distraída e ruminou o resto do dia, passou-o leviana e não pensou mais nas cordilheiras do himalaia que as outra estaria a ver com seus olhos bisbilhoteiros e as carreirinhas que cheirou e as travestis que já flertou.