outubro 02, 2014

queda brusca

ora, conte me da queda brusca. as mãos bem enterradas, o corpo inerte no chão. conte me com detalhes sórdidos. ela se estapeou toda e rubra e completa caiu ao chão. pesado, ouvi o baque seco. no chão permaneceu. criou ali um buraco, um fosso. acredita que fundo corre água. fundo corre água. o peso do corpo dela vai fazer amolecer a terra. e quando a terra desfalecer: vai ser enxurrada de água.

água, óleo ou petróleo. vai brotar da rachadura da terra, como o filete de sangue que escorre pela perna dela. fundo corre sangue. ela deixou as pálpebras caírem por cima dos olhos vivos já faz um minuto. logo as pálpebras pesarão mais que cem toneladas. a pressão do pulso dela é um chumbo! e o coração acelera. cairão as pálpebras por cima das bochechas.

as bochechas, por sua vez, desabrocharão sobre os seios. os seios tombarão fundo ao chão. ela é só uma semente, um tronco retorcido. a cabeça se entortará levemente e a língua pulsa para a fora. daqui eu vejo as papilas gustativas, expelindo secreções. afaste as crianças, venda as janelas, leva os cães. deixe tudo só.

não corra a notícia, proíba o comércio ou o turismo, sob o corpo retorcido da santa um mundo livre de injúrias e de trocas comerciais se erguerá. a queda é milagre da terra. ela a puxou como se se lembrasse do seu direito de posse. conte me de seus últimos gestos, da última palavra de profeta. ela não podia resistir. abriu a língua mas não produziu som nenhum, agora a vê aí, saltada e vermelha. ela sequer babara.

ela criará aqui o fosso da vida. úmido e húmus, excremento, minhocas retorcerão o corpo até terra ser corpo e corpo ser terra. tenho certeza disso, obrigada, doutor, obrigada, criança. anote tudo mas não conte para ninguém. escreva, mas publique num livro daqui cem anos. ela fará correr água e sangue por essa terra. mas é uma terra condenada, de antemão. está lavrada dos excrementos dela. está abençoada por seu mijo.

olha, veja, como sai amarelo de dentro da vagina aberta e flácida. a perfeição que era essa vagina, recortada em dobras e mucosas sofridas, perfeitamente costuradas. com o nome dela bordarei panos de pratos. este mijo será o ouro, daqui mil anos, será ouro, o cheiro não é ácido, é metálico. ela já está pútrida, infelizmente. não pode servir ao novo mundo. enterrarei do seu lado meu cajado e encerrada está a missa e assembleia. 

declarado o fim, corriam como pulgas o mijo dourado solidificado em pedrinhas brilhantes. as crianças a atacaram. e depois os urubus. e mosquitos e ratos. foi apenas uma queda? uma queda de senhora, qualquer desvio do osso da perna, o corpo pesou e não foi possível levantá-la. e a água que jorra é água de putrificação. enxofre, de ovo podre, não de demônio, percorre o ar. o fosso que ela cavou tudo barrou.

uma seca de quinhentos anos tornará a cair sobre nós. a partir daqui, nem água, nem sangue. os lagartos e sapos se enroscarão com as cobras e nada que tenha dois olhos, muito menos duas mamas. as moscas multiplicarão, este é o reino delas. a queda brusca foi um acidente geológico. a queda de uma nação desimportante, em qualquer pico do oriente. as rezas que sibilam por ela ressoam como as cobras, são palavras inteligíveis. pedem paz à ela. 

ninguém mais deseja vê-la, é melhor você ir embora também. não há mais nada que lhe contar, a queda foi acaso, coisa qualquer, e já é passado. choram as histórias, mas não choramos nós, não chora tampouco seus olhinhos quietos. gritos não acordarão. a queda foi só um vasilhame. nela depositaram as monções e os dejetos. guardamos os desejos, não o escondemos na terra. 

a terra dela é barro. bebemos água no seu barro e chafurdamos no seu barro como se fosse piscina. o fosso é uma mentira.