março 30, 2013

abóbora

cor de abóbora. cor de abóbora os pastos, cor de abóbora os ladrilhos do teu prédio. cor de abóbora. sorriu-me e um dente estava todo pintado: cor de abóbora. que é, perguntei, que é isso, lambi. depois sumiu, ficou elas por elas, cor de dente, de nada. mas antes, eu te disse, antes era abóbora. abóbora grande e vermelha. vermelha só como uma abóbora pode ser. cortada com aquele sorriso cínico do halloween das crianças de nova iorque. ora, temos halloween aqui, disse entredentes, estupefata, etc e tal, mamilos arrebitados (será que estava excitada?) conte-me mais. eu e as crianças do meu condomínio. ah sim, eras de condomínio. sim, de casas. eu e as crianças saímos às ruas a pedir: doces ou travessuras. mas quem é que primeiramente traduziu assim: doces ou travessuras? podiam ter dito doce ou brincadeira doce ou benzedeiras doce ou perversidade. perversidade, sem dúvida. se bem, que não fazíamos nada. ameaçávamos, e era o bastante. e que faziam? fiquei repentinamente obcecado por aquela imagem dela pequena, os cabelos curtos à moda da época, o vestido cor de abóbora com estrelas douradas, a abóbora cobrindo a cabeça (como é que via os cabelos? via a avó dela a ajeitando com cuidado, passando sombra dourada nas bochechas e a mãe batendo-lhe, dizendo alto para todos ouvirem, ai essa velhinha esquizofrência, como se fosse fofo, como se fosse fofo). ela disse que as crianças percorriam as ruas seguras, bem verdes de árvores bem plantadas, as casa bem estruturadas, pintadas, etc, etc encanamento todas tinham? ela me olha com olhos de outro mundo, acho que não sabe que não há casas sem encanamento, encantamento. e como conheciam cada velho cada pai cada um daquelas casas decrépitas de alma, iam de tortura ingênua, ou assim apelidei. ameaçavam afogar o yorkishire do dono ciumento, que escondiam por uns quinze minutos e tapavam-lhe a boca (mas nunca nunquinha os machucamos, ela disse, sincera e aguada). ameaçavam quebrar a fonte de água de mármore com um bastão de beisebol (beisebol, minha querida, também não é muito comum por aqui). ameaçavam com pedras quebrar janelas de vitrais caríssimos de uma carola que fazia da sua casa sua própria igreja católica (se pudesse lhe aconselhar hoje em dia virar protestante muito mais se acomodaria a seu modo de viver a vida). ameaçavam destruir as flores intercaladas, de rosa e amerelo, de trocar as cores, de arrancar as mudas, de pisar nos holofotes, de trocar pedras brancas por pedras comuns, ameaçavam arrancar as maçanetas e deixar as portas das casas as intimidades todas expostas até mesmo queimavam camisolas caríssimas roubadas pelos próprios filhos e os próprios filhos sabendo dos segredos e dos rumores diziam saber onde é que se escondiam as jóias e os diamantes e diziam saber que se podia enterrar noutra vizinhança, um amigo uma vez disse: vender na televisão, ha ha ha ha ha ha ha ha ha ha ha ha ha ha. por mais que as crianças rissem rissem rissem abóboras pequenas e redonduchas cruéis por diversão os pais achavam que havia alguma possibilidade real e corriam a esconder as jóias em cofres e etc e longe do alcance dos pimpolhos nestes filhos não há de se confiar. mas, lindo, são eles herdeiros da sua adorada herança não são? calados e calados ouvíamos o zumbir da noite que nesta parte da cidade, ela me disse, é intenso, a noite ainda é escura, a lua ainda brilha forte e ás vezes amarela, e os grilos e corujas e morcegos piam e farfalham as árvores. ai, você precisa ver: é como viver de novo, o campo, a roça, a vida de verdade sabe. sei. beijava os olhos dela quando ás vezes não aguentava de tanta ingenuidade destruidora. você continua assim uma criança abóbora. abóbora hahahahahahha hihihihi huhuhuhuh. ela ri alto alto alto. abóbora, como você é engraçado. você sabe que hahahaha começava a rir os pais colocavam as jóias em cofres então veio o presidente e tirou-lhes tudo tirou-lhes tudo tudo e eles perderam e tudo que tem são os gramados extensos e mal tem dinheiro para pagar o jardineiro. e ela começou a chorar, primeiro timidamente, depois de um jeito desesperado. você me acha mimada e aristocrata você me acha branca arrogante e classe especial mas meus pais choram choram a grama toda alta lá em casa, um capim só, não sabemos o que fazer. não tem dinheiro, não tem jóias nada. hoje em dia, voltei lá, havia um aviso: PROIBIDA BRINCADEIRA DOCES OU TRAVESSURAS. proibiram, viu? proibiram porque levou a miséria todo mundo. mas era uma tristeza tão cega e real que eu me redimia e dizia que podia ir lá cortar grama para os pais dela e ela ficava feliz porque no fundo se redimia das suas travessuras. mas eram só ameaças, é lógico, um pouco sentimentais, mas o que mais podíamos fazer? éramos ricos e entediados. e a lucidez dela me assombrava repentinamente, eu não sabia mais o que pensar: se lúcida se ingênua se arquétipo se mascarada, que é que você tem, eu repetia, beijando o corpo branco e macio da minha donzela. tinha uma abóbora na cabeça, fazia os dentes abertos parecer a boca reprimida em si mesma e o pescoço alvo e alto como se tivesse esticado, mas assim nascera: aristocracia de pescoço, ria divertida, aristocracia de. comia-lhes as abóboras, as viscosidades da vagina, os pêlos como de uma abóbora cozida e dizia lambuzado: é abóbora, meu amor, você por dentro: é abóbora.