novembro 07, 2013

segunda carta bélgica

hoje acordei triste e quis conversar com você. a televisão tem me assustado, durmo com ela ligada - não sei se é pior dormir ouvindo a rua desmoronar ou a voz lacônica do âncora entediado. a voz lenta e pastosa, que tenta noticiar o fim sem alarde, os sons do mundo mudos em prol da legenda que pisca o absurdo. você não gosta dele. você não gosta do tom da voz que ele usa, você proclama para mim que odeia a contenção. a exuberância dos amontoados de pessoas - restos de pessoas - sendo jogados de um lado para o outro, enquanto se lê a ordem judicial. não, não é permitido ficar. é permitido sair. só é permitido. você chora um pouco. e inventa que a última nota da frase dele saíra aguda e trêmula. até o homem-aço, por detrás da tv, chora. eu só ouço a gravidade cadenciada das frases. (frases nas línguas?). mas te abraço e te reconforto, digo que tudo ficará bem. acho graça na sua lágrima, te pressiono na parede. a voz continua - você quer desligar a tv. você quer desligar e nunca mais ouvi-lo. eu não sei. tenho a impressão que se o mundo tivesse acabando a gente continuaria aqui, sem saber. tenho ouvido uns ruídos, uns barulhos esquisitos, sons de demolição, outro dia até ouvi gritos, pensei que vinha dos seus pesadelos. você anda sonhando muito alto. te acudo em febre, faço compressas, te beijo para cicatrizar seu amor. você me olha, mas não sei o que tem pralém das retinas. você se tornara opaco. me beija rápido, sôfrego, com medo de algum estampido, algum clarão, algo que vai nos matar no ato. você vira, eu te abraço, e seu choro tímido, eu já não consigo. finjo que não ouço. te seguro. agora é duas da manhã e você não chegou. tenho os olhos vidrados na tv pra não deixar escorrer a profusão de dor. se eu deixar, vai ser um inferno. um fim de mundo. preciso manter esse mundo, o nosso mundo, até você chegar. e em vigília, te esperarei, como esperou aquela senhora palestina (?) a polícia lhe arrancar do seu templo.