setembro 09, 2012

sonhos

meu querido, sonhei contigo. é preciso lhe dizer que sonhei contigo, pra que o sonho fique gravado e também tenha algum tipo de sobrevida. é que depois de sonhar esses sonhos, meu senhor, já não podemos mais ser os mesmos. pouco sei sobre os sonhos, mas o que sei deles é o efeito que deixam em mim, quando acordo, a isto que chamamos vida. os sonhos são diferentes das ações em si, concordo contigo, quando diz isso, levantando as sobrancelhas e falando daquele modo de dizer - de dizer empiricamente sobre coisas empíricas. mas tem um peso que já não posso ignorar. se o sonho não é uma ação, colada à realidade, possui substância, matéria viva, que percorre em mim. se o sonho não muda o percurso que seguia a contentamento (ou des, neste mundo de horrores) da realidade, pelo menos muda alguma coisa em mim. na minha matéria inflada, digamos assim, um formigamento no corpo, o coração que se acelera e os meus olhos, quando te vêem! os meus olhos quando te viram passar por este meu caminho, reconheceram antes mesmo que sua figura tomasse conta do espaço a qual posso visualizar. te reconheceram pois tinham te visto antes na matéria esfumaçada do sonho que foi concedido à mim. ah, sim, meu querido, diga que é a memória ou o inconsciente, mas o presente de te ter em meu sonho é uma concessão, quase divina, uma concessão, úmida o bastante para alagar bons três dias da minha vida. e quando chegou-se próximo eu me sentia mais próxima, mais afetuosa, mais lasciva, por assim dizer, se me permite usar destas palavras bobas. quer dizer, meu querido, que a matéria do sonho só não mudou meu corpo e meu modo de te olhar e de te reconhecer mas também te mudou - ou você também não é parte da minha projeção para o mundo? te mudou porque te quis assim, mudado. te quis, assim, próximo. e se não mudado, quando a realidade joga suas pedras - se o meu calor não te faz retornar em calor, amor meu - a expectativa que se gera é a da frustração. frustração, meu querido, vem a partir de um fato que se escafela, por assim dizer, nos decepciona. o fato é que te vi cheio de calores. se me entrega calafrios - e não destes - caio em pedaços. pois em sonho, meu querido, estava você dentro do meu quarto duma antiga casa que morei, um quarto que tinha esquecido como era, você meu querido, dentro das minhas mais recônditas memórias, apontava a toalha rosa molhada na porta e fumava, jogando sua fumaça na toalha enquanto lhe apontava. não sei transmitir em palavras quanto amor existe nessa única imagem. você dizia, eu não sei o que. você dizia, mas posso apenas imaginar, a sua boca que se desenha com o formato adocicado das palavras, a fumaça do cigarro que então ainda rondava o ambiente que ali bem se acomodava. meu querido fumava um cigarro de palha, pois então - ou não era de palha, mas bem sabe, que os sonhos modificam os próprios sonhos e mais ainda que os sonhos, modifica-se a narrativa que o narrador, sendo ele o único a ter vivenciado aquele saboroso momento, pode inventar e desiventar, se não por graça, talvez inconsciência ou um certo costume nesse jeito afloreado de se contar histórias - ou então meu querido, apenas não digo qual a marca do cigarro que estava entre seus dedos, para não me entregar por completo. apesar de aqui estar lhe abrindo a alma e os recônditos profundos do inconsciente, devo ter dedos, devo ter cuidados, manter a devida distancia, para o mínimo de preservação (de orgulho, mas vá lá, preservação de algo). mas fumava e então, andou pelo quarto, pisando com carinho pelo chão de taco que era feito o meu quarto. e foi indo até a janela, donde avoava uma cortina verde clara. lembro de  você, meu querido, olhando lá fora pelas grades, do lado adornado a cortina verde, a fumaça ainda escapando por volta de você - essa fumaça, meu querido, coisas de me fazer derreter. e não sei por onde um gato laranja que nunca tive se não em pelúcia escorregou pelos seus calcanhares - que agora vejo, estava de meia... tão coerente - e a pedir carícias ficou ali enrolado com a barriga de cima. você todo homem e todo conciso jogou a bituca pela janela ao longe e olhou para baixo, o gato amarelo esfregando-se todo. nesse momento eu, esta figura que mal sei se narradora ou personagem, se me olho por fora ou se a visão é subjetiva, abaixo para acariciar o dito gato que nunca tive - o toque do surrealismo que o narrador insiste em colocar a fim de dar veracidade ao seu sonho, pois sonho só parece sonho se tiver aparência de sonho, ditada desde o século vinte por toda essa coisa enfadonha de surrealismo e coisas extraordinárias, desconectadas, não sei (na verdade, querido, meu sonho não é nada mais que uma imagem fixa e potente que me alivia as têmporas quando sinto-me desesperada pelo que há ainda de viver). e acariciando tal gato laranja, os bigodes me espetando, ponho-me debaixo de ti, bem embaixo de ti, e agora sou capaz de ver subjetivo a visão que debaixo tive e você por cima, já sem cigarros, como antes olhava o gato agora olha a mim. olha a mim, olha a mim. e eu sinto tão verdade o calor do seu olhar ou das suas pernas que me comprimem levemente, coisa pouca, aumentada pelo calor de lhe contar, com os olhos assim, abaixados de vergonha mas ao mesmo tempo querendo lhe contar erotismos para que sinta tão potente o que eu senti. pois só te descrever erroneamente o que fora meu sonho não é possível, querido, que lhe toque a ponto de que você seja exatamente o que é para mim agora. que você aja exatamente do jeito que eu quero que você aja. que pegue entre seus dedos esse teu cigarro desta marca que não digo que sei qual é e que me leve. e me levando faça acontecer o que do ímpeto surgira do sonho - e do ato de contá-lo simplesmente - e me fazendo acreditar que coisas, sim, podem nascer dos sonhos, coisas, sim, de fato, real como o calor que sinto por você agora, no momento em que traga este cigarro.