agosto 28, 2013

pocahonta

vó índia, te vi hoje nas escadas do metrô. reconheci-te índia pelos formatos dos olhos enviesados, pelo nariz largo, a pele escura. e os cabelos curtos, com umas mechas pintadas de vermelho. índia, seus cabelos. seus cabelos pintados de vermelho, da cor da blusa de frio que usava. índia, não era assim tão vaidosa. a não ser pelo cabelo, bem que sim. depositava um olhar desconfiado a tudo. pensei eu, que não era tão vaidosa. vendo-te de perto vi uma argola dourada na sua orelha. passada a primeira escada rolante, segui eu confiante em direção a segunda. você foi em direção à escada. parecia cisma vontade inquietação de ganhar logo a rua. pegar o atalho mais fácil. a rua, a brisa, noturna. citadina, sim. mas ainda sim exterior. perdi-te. e te perdendo lamentei. que tristeza chamar-te de índia, vó. a pele sulcada de sol e de velhice. de índia, se não sei que índia. tal termo cunhado há tanto tempo, de dores e de generalizações. será você tupinambá, yanomami, guarani-kaiowá, mera tupi, macuxi, gajajaras, xavante ou pataxó? se assim o soubesse, se de você ouvisse, que diferença faria? nada sei se na tua tribo as meninas pescam ou cuidam dos filhos, pintam-se, brincam com macacos, buscam piolhos, escondem-se por um ano inteiro. nada sei, pois tudo que me ensinaram foi pataquadas, generalizações, fazer batuque com a boca aberta a mão, cocar. apressei-me sem contento a sair do metrô e visualizei você do outro lado da rua. como quis te encontrar e te parar e te apreciar. e sobretudo pedir perdão por não saber. por gostar de índio desde pequena dos documentários de tv que muito julgava o bem, mas que me fizeram especialista em nada, defensora de ninharias, distante o bastante para nunca. bem que você sabia que um dia, quando pequena, andei com meu pai distância enorme, quinze quilômetros, a procurar uma tribo de índios no guarujá. lá chegando dei de cara com casas metades casas como as minhas metade palha. fiquei triste tristinha me senti enganada, ó eu, tão judiada, como vocês indiozinhos não se manteram a ferro e fogo o que são pra mim ó eu branca descendente de europeus, índios como índios são nos livros? entrei na casa do pajé, a única inteira intacta, assim media completude, comprei bugigangas, colar de sementes que perdi, um chocalho que meu irmão ainda brinca, achei mal cheiro, me fui. diga, vovozinha índia, conto-te tudo porque preciso pedir perdão. olhei-te tanto a atravessar o sinal que você me olhou de volta. os olhos negros as argolas douradas a pele de cor-queimada. inventei em romance que me invadia a alma, mística, cósmica, fogueira e feitiço. pocahonta. mas tive que te abandonar à minha vista, pois precisava ir na farmácia a comprar absorventes. absorventes, coisas estúpidas, feitas de algodão, plástico não sei o que lá, o que é vocês índios faziam, havia de ter algo mais inteligente que isso. comprei obs, veja bem, que é o que dão a entender que mulheres mais inteligentes compram obs. não sei bem porquê. entrei em casa pensando em você tomei banho quente pensando em você pensando que talvez uma ducha quente seja bom para todo mundo, nesse frio, são paulo, não mais de paratininga, da onde você é? com quantos anos veio? pataxó, xavante, guarani. não faço a mínima ideia. mas a tinta vermelha do seu cabelo, urucum não, talvez tinta de farmácia com alguma magia. era vermelha mesma, não dessas ruivosas de velhas pimponas. um milhão de preconceitos prescrevo. como é difícil escrever sobre você, vó índia. vai com os deuses que não sei quais são. fico eu cristã burra universitária triste de saber o mundo só um pouco, bem pouco, tão pouco. olha-me de novo. esses olhos não me enganam. são de.